Povos do rio Tapajós são ‘atropelados’ por corredor logístico para levar soja à China, diz estudo

Impulsionada pela forte demanda do mercado chinês, a expansão do corredor logístico para escoar grãos pelo Norte do país vem deixando um rastro de impactos negativos no entorno do rio Tapajós, na Amazônia, de acordo com estudos de ONGs sobre projetos de infraestrutura na região.

A reportagem é de Júlia Dias Carneiro e publicada por BBC Brasil, 30-08-2017.

 

Segundo um relatório da ActionAid e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), a região do médio Tapajós, no noroeste do Pará, está em vias de receber cerca de 20 novos portos privados para o transporte de grãos ao longo da próxima década.

De acordo com o estudo, os investimentos no corredor logístico têm gerado uma supervalorização fundiária, pressiona comunidades tradicionais a deixarem suas terras, favorece a concentração de renda e altera a paisagem de uma região que é considerada um dos maiores mosaicos de áreas protegidas no mundo.

As críticas são reforçadas por um segundo estudo que questiona o modelo de desenvolvimento em torno do rio, que acaba de ser lançado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e calcula em 26 o número de portos a serem construídos no Tapajós.

A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará (Semas) confirma apenas 15 estações de transbordo licenciadas ou em processo de consulta, sendo quatro já autorizadas para operação.

Lançado nesta quarta-feira no Rio, o primeiro relatório, intitulado “A geopolítica de infraestrutura da China na América do Sul: Um estudo a partir do caso do Tapajós na Amazônia brasileira“, credita a expansão do corredor logístico sobretudo à demanda da China – principal parceiro comercial do Brasil e, no que concerne especialmente à região, maior comprador da soja nacional.

“O Tapajós se tornou a rota mais almejada da soja brasileira, com a expansão mais dinâmica em curso no Brasil, e a demanda chinesa é o fator determinante para isso”, diz Diana Aguiar, assessora nacional da Fase e autora da pesquisa.

 

População ‘atropelada’

De acordo com Aguiar, o preço da terra no entorno do município de Itaituba, epicentro dos investimentos, explodiu, gradualmente afastando populações tradicionais das margens do Rio. Nas regiões à beira do rio, lotes de terra chegaram a ter valorização de 2.000% na última década.

A pesquisadora diz que há indícios de grilagem na análise dos títulos de terra, com registros existentes apenas de 2000 para cá, e de destruição de sítios arqueológicos, com artefatos antigos de cerâmica encontrados, mas ignorados, no processo de terraplanagem para construir um dos portos.

Além das mudanças à beira do rio, o aumento do fluxo de carretas chegando com grãos pela BR-163 também vem aumentando a poluição sonora e ambiental. “A população se queixa do aumento de atropelamentos, poluição, engarrafamentos e da exploração sexual de menores nos postos de triagem”, diz.

“De repente o território dos povos do Tapajós, por uma confluência de interesses, se tornou rota da soja. É um atropelamento de empreendimentos que chegam por razões completamente alheias à lógica territorial. As comunidades locais passam a ser vistas como uma pedra no caminho da soja“, acrescenta Aguiar.

 

Fator China

Aguiar passou cinco meses no Tapajós para estudar o impacto local dos investimentos em infraestrutura e das relações com a China – analisando a região como termômetro das mudanças provocadas pelo gigante asiático, na expectativa de que os investimentos chineses na área de infraestrutura aumentem expressivamente nos próximos anos.

O presidente Michel Temer chega à China nesta quinta-feira para a 9ª Cúpula dos Brics (grupo de países emergentes que inclui BrasilRússiaÍndiaChina e África do Sul).

Além de fazer visita de Estado, Temer participará de um seminário empresarial para apresentar o pacote de concessões e privatizações de aeroportos, portos, rodovias e linhas de transmissão, buscando atrair investidores chineses. Lançado na semana passada, o pacote inclui a venda de parte da Eletrobras e projetos de infraestrutura voltados para o Arco Norte.

Um deles é o Ferrogrão, megaprojeto de construir uma ferrovia de Lucas do Rio Verde, no norte do Mato Grosso, até Itaituba. O projeto está previsto para licitação ainda neste semestre.

Planos para a região incluem ainda hidrovias no rio Tapajós, iniciativa que estava atrelada à construção da hidrelétrica do Complexo Tapajós. Após protestos de organizações ambientais, movimentos sociais e os indígenas da etnia Munduruku, o projeto teve a licença suspensa pelo Ibama no ano passado.

O escoamento de grãos pelo chamado Arco Norte, que abrange os estados de Rondônia, Amazonas, Pará, Amapá e Maranhão, permite levar grãos do Centro-Oeste até a China saindo pelo Atlântico Norte e passando pelo Canal do Panamá, evitando o longo trajeto mais longo e oneroso até os portos mais saturados do Sul e do Sudeste.  A rota é mais vantajosa também para o transporte para os países da União Europeia,segundo maior compradora da soja brasileira.

A rota é a que mais cresce para o transporte da soja. De acordo com Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), o escoamento do grão pelo norte teve aumento de 172,4% entre os primeiros semestres de 2012 e de 2017.

De acordo com o Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, o Arco Norte garante competitividade às commodities do país no mercado externo, e na safra 2017/2017 já escoou 23,8% das 96,9 milhões de toneladas de grãos produzidos no país. Desse total, somente o corredor Tapajós escoou 2,67 milhões de toneladas.

Em nota, a pasta afirma que não pode comentar os relatórios sobre a expansão do corredor logístico do Tapajós por não ter tido acesso aos documentos.

“O ministério pode, contudo, garantir que cumpre a moderna legislação ambiental em vigência no Brasil, que inclui estudos de impacto ambiental e audiências públicas para ouvir as populações que vivem nas regiões afetadas por obras.”

Expansão estratégica para agronegócio

O corredor logístico que usa o rio Tapajós como porta de saída para o oceano começou a se desenvolver em 2003, com a entrada em operação do terminal portuário construído em Santarém pela gigante norte-americana Cargill, e se acelerou após 2013, com promulgação da lei que permite a instalação de portos privados no país.

A região que vê mudanças mais expressivas é o entorno do município de Itaituba e do distrito de Miritituba, cerca de 300 km ao sul de Santarém, que ganhou o primeiro terminal portuário em 2014, da Rio Turia, representante da norte-americana Bungeno Brasil – e que teve 50% da operação comprada pela Ammagi, do ministro da Agricultura Blairo Maggi.

Outras gigantes do setor agrícola estão investindo na região, como a Cargill e a Louis Dreyfs, além da joint-venture Cianport, que tem capital chinês.

Itaituba e Miritituba ficam em lados opostos do rio, e veem a margem verde gradualmente ser ocupada por silos e estruturas metálicas nas estações de transbordo de carga, que recebem soja trazida em carretas e despejadas nas barcaças.

No estudo “Portos no Rio Tapajós: O Arco do Desenvolvimento e da Justiça Social?“, o Ibase questiona o modelo de desenvolvimento que avança na região.

O relatório calcula em 26 o total de terminais portuários a serem estabelecidos no Tapajós, contra a estimativa de 20 feito pelo relatório da ActionAid/Fase.

Diana Aguiar diz que foi difícil levantar o número de portos, afirmando que “nem organizações, nem prefeituras, nem o governo do Estado” tinham clareza de quantos terminais estavam previstos. O número leva em conta em empreendimentos em construção, em licenciamento ou ainda em fase de planejamento.

‘Apresentação isolada’

Camões Boaventura, do Ministério Público Federal em Santarém, diz que falta transparência e planejamento aos projetos que vêm sendo implementados, que são apresentados de maneira isolada, dificultando o debate e o engajamento social.

“Existe mobilização, mas para a população é difícil entender todas essas iniciativas e de reagir, porque são tantas coisas separadas. Isso também dificulta a fiscalização e afasta uma avaliação ambiental integrada, compreendendo os efeitos que os projetos vão trazer em conjunto.”

“A apresentação isolada vem para fugir ao controle dos órgãos e ao acompanhamento da sociedade civil organizada.”

Questionado pela BBC Brasil sobre os impactos negativos, ele rebateu com uma pergunta: “Existe algum impacto positivo? Eu não consigo ver nenhum para a região”.

A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará (Semas) afirma que, ao analisar projetos, realiza audiências públicas para dialogar com a comunidade e os diferentes órgãos envolvidos no processo, expondo os benefícios do projeto e propostas para compensar os possíveis impactos gerados.

Ressalta ainda que as empresas são obrigadas a detalhar os programas sociais que vão implementar como medidas compensatórias nos Estudos de Impacto Ambiental que apresentam à secretaria.

“A Semas ressalta que, desde o início dos licenciamentos das estações de transbordo na Região do Tapajós, teve a preocupação quanto à preparação do local para recebimento dos grandes projetos, considerando os impactos ocasionados na coletividade e a capacidade de suporte, controle e monitoramento da qualidade ambiental e social da região”, informa a pasta em nota, dizendo que um Plano de Controle Ambiental Integrado foi criado para monitoramento “os impactos comuns”.

‘Arco do desenvolvimento?’

Questionando a associação dos portos do Tapajós ao desenvolvimento, o estudo do Ibase reconhece que o corredor logístico do Tapajós é parte do esforço de desafogar as exportações do agronegócio, reduzir custos de transporte e aumentar a competitividade de grãos no mercado global.

Porém, diz que o barateamento de remessas logísticas vem com alto custo para as populações locais.

“Esses portos são símbolos da concentração da riqueza para poucas empresas, principalmente estrangeiras, que não procuram Itaituba como fonte de desenvolvimento local, mas como fonte de interesses individuais e de seus acionistas”, escreve o autor Jondison Cardoso Rodrigues.

“Apontam para um pequeno grupo empresarial que lucrará bilhões de dólares às custas do desmatamento, da poluição e contaminação das águas, da legalização da grilagem, concentração de terra, do desmonte de comunidades tradicionais: ribeirinhas, camponesas e indígena da região do Tapajós“, conclui.

De acordo com Jane Silva, articuladora do Ibase no Pará, a construção dos terminais portuários está deslocando famílias ribeirinhas das margens do rio Tapajós, reduzindo a pesca artesanal e desestruturando áreas residenciais de Miritituba.

“Caso se confirme a implantação dos 26 portos previstos, as terras entre a margem direita do rio Tapajós e a BR-163 (por onde os caminhões chegam do Centro-oeste) serão todas reconfiguradas e colocadas a serviço da logística de exportação da soja e, futuramente, de madeira e de minério”, considera Silva.

Fonte: IHU-Unisinos

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