Povo garífuna enfrenta corporações e Estado em defesa de suas terras na costa de Honduras

Por Giorgio Trucchi. Estado hondurenho se recusa a reconhecer condição indígena dos garífunas, negando-lhes o direito à terra, enquanto corporações avançam com o monocultivo, ameaçando soberania alimentar na região.

Em outubro de 2015, a Aliança Estadunidense pela Soberania Alimentar (USFSA, na sigla em inglês) decidiu outorgar à Ofraneh (Organização Fraternal Negra Hondurenha) o Prêmio Soberania Alimentar daquele ano na categoria internacional. A distinção é dada anualmente a ativistas de base que trabalham por um sistema alimentar mais democrático e que promovem e defendem o direito à soberania alimentar.

Criada em 1978 para proteger os direitos econômicos, sociais e culturais das 46 comunidades garífunas situadas na costa caribenha de Honduras, a Ofraneh trabalha há quase quatro décadas organizando seu povo e defendendo seu território ancestral da expansão das monoculturas em grande escala, da ameaça dos megaprojetos turísticos, hidrelétricos e de mineração, do narcotráfico e das mudanças climáticas.

Projetos como as Zonas e Emprego e Desenvolvimento Econômico (ZEDE) promovidas pelo governo hondurenho, mais conhecidas como “cidades-modelo”, que incluiriam pelo menos 20 comunidades garífunas em cinco das dez regiões apontadas para o leilão ao capital transnacional, somam-se agora às ameaças que recaem sobre o povo garífuna.

“Os garífunas, que já sobreviveram à escravidão e ao colonialismo, estão agora defendendo e fortalecendo a posse da terra, a agricultura e a pesca sustentável em pequena escala. A Ofraneh reúne e organiza as comunidades para enfrentarem esses desafios”, lê-se nas motivações do prêmio.

Isso é feito, principalmente, promovendo ações legais – tanto nacionais quanto internacionais -, promovendo a cultura garífuna e apoiando “a construção de um movimento no qual se prioriza o desenvolvimento da liderança dos jovens e das mulheres”.

Miriam Miranda, coordenadora da Ofraneh, disse a Opera Mundi que o próprio Estado de Honduras se transformou em uma das principais ameaças ao povo garífuna. “Continuam se negando a reconhecer nossa condição de povo indígena e pretendem nos renegar à condição de minoria étnica não autóctone, sem direitos jurídicos internacionalmente reconhecidos”, afirmou Miranda.

Essa atitude traz consigo a negação do direito ancestral que o povo garífuna tem sobre seus territórios, pretendendo, assim, evitar a aplicação do Convênio 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre povos indígenas e tribais.

“Dessa forma, nega-se o legítimo direito que nós garífunas temos à Consulta Livre, Prévia e Informada, concedida pelo Convênio 169 na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas”, disse a dirigente garífuna.

“Sem a aplicação do direito a essa consulta, nossas comunidades serão sepultadas por um suposto desenvolvimento a favor da elite do poder e do capital transnacional”, acrescentou Alfredo López, vice-coordenador da Ofraneh.

López sofreu a repressão. Foi detido em 1997 sob acusações falsas e esteve em prisão preventiva durante mais de seis anos por sua luta contra o projeto turístico Marbella, que tinha despejado a comunidade garífuna Triunfo de la Cruz de uma parte de suas terras.

Seu caso chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado de Honduras e facilitou sua libertação.

“O Estado de Honduras foi condenado porque o líder garífuna não foi tratado com o devido respeito à sua dignidade humana, ao violar seus direitos como detido. Durante sua privação de liberdade, López viveu em condições carcerárias subumanas e foi proibido de falar seu idioma materno, o garífuna”, afirmou o CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) em um relatório de 2006.

Negação de identidade

Em sua defesa, o Estado de Honduras argumenta que os garífunas chegaram ao território hondurenho somente em 1797 – provenientes da ilha de São Vicente – e que ocuparam ilegalmente os territórios dos povos Tolupán e Miskito. Em mais de uma ocasião, funcionários do Estado reforçaram o conceito de que os garífunas são estrangeiros e, portanto, não gozam de direitos territoriais.

“Em diversas ocasiões, o Estado agiu com uma forte carga de racismo institucional, não somente negando nossa origem e condição de povo indígena, mas validando o monopólio ilícito e a invasão das nossas terras e territórios, assim como o deslocamento e expulsão das comunidades garífunas”, disse Miranda.

“Ao negar nossos direitos coletivos, o Estado mostra seu desprezo em relação a nosso povo e ao direito internacional”, acrescentou.

De acordo com a coordenadora da Ofraneh, a ofensiva estatal contra os direitos ancestrais do povo garífuna desencadeou também um processo de criminalização de qualquer tentativa de defesa do território, tanto por parte de empresários nacionais e empresas transnacionais, como de autoridade do Estado hondurenho.

Frente à inoperância dos órgãos nacionais encarregados de procurar e administrar a justiça e frente à impunidade generalizada que existe em Honduras, as comunidades garífunas, com o acompanhamento da Ofraneh, decidiram apresentar uma série de petições à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

“A visão de território comunitário é parte integral de nossa visão de mundo, cimentada na família extensa e na matrifocalidade, que perdura até hoje. Perder nosso território é como perder nossa mãe, nossa vida”, afirmou Miranda.

Depois de anos de investigação, a Comissão Interamericana optou por remeter dois casos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que envolvem as comunidades Triunfo de la Cruz e Punta Piedra, como vítimas de violação ao direito de usufruto da propriedade coletiva e transgressão à Consulta Livre, Prévia e Informada.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos são instrumentos do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e estão inscritas na OEA (Organização de Estados Americanos). No caso da Corte, suas resoluções são obrigatoriamente acatadas pelos países membros desse órgão.

Segundo os juízes de Corte, os integrantes da comunidade ainda não possuem um título de propriedade idôneo e culturalmente adequado sobre seu território. Também alegam que somente existe reconhecimento de uma parte do território ancestral e que o Estado continua negando um título único baseado na ocupação histórica.

Entretanto, não se trata unicamente de que o Estado legalize as terras a favor das comunidades garífunas, mas que garanta seus direitos sobre as terras que lhes foram atribuídas.

“De nada serve que o Estado entregue títulos de propriedade coletiva aos povos indígenas se depois não garante que os direitos que emanam desses mesmos títulos sejam respeitados. Em Honduras, chegamos ao absurdo que o próprio Estado é o principal responsável pelo desrespeito aos direitos ancestrais dos povos indígenas”, reiterou Miranda.

No último dia 18 de dezembro, a Corte notificou as partes sobre a sentença pelo caso das comunidades de Triunfo de la Cruz e Punta Piedra, em que responsabiliza o Estado hondurenho por violação do direito à propriedade coletiva.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou ao Estado o cumprimento de uma série de medidas de reparação como forma de reverter o dano que, por mais de uma década, tanto o Estado como proprietários de terras, autoridades municipais e empresários estrangeiros causaram às comunidades garífunas.

Dois casos emblemáticos

A comunidade Triunfo de la Cruz apresentou à Comissão Interamericana em 2003 e à Corte Interamericana em 2013 quase trinta casos de apropriação ilícita de território comunitário “pelas elites de poder do país que construíram suas mansões conspirando com as autoridades da prefeitura [da cidade] de Tela”, sustenta a Ofraneh em suas publicações.

O caso da comunidade Punta Piedra também chegou à Corte em 2013. Remonta a uma invasão promovida por um militar em 1992 – sem que, mais de duas décadas depois, exista interesse por parte do Estado hondurenho em devolver as terras em litígio a seus proprietários.

“Frente a essa política de desconhecimento de direitos, as comunidades garífunas têm sofrido um saqueio histórico, tanto dos habitats funcionais das comunidades, incluindo as costas, como de terrenos dentro dessas comunidades”, afirmou Miriam Miranda.

Apesar de a partir da década de 1990 ter tido início um processo histórico de titulação parcial, a aprovação de forma simultânea da Lei de Municipalidades permitiu a inclusão de muitas comunidades garífunas dentro das áreas urbanas dos municípios. Esse argumento legislativo “legalizou” a expropriação dos territórios ancestrais.

Esse processo registrou uma forte aceleração a partir de 2009, quando Honduras sofreu um golpe de Estado que derrubou o então presidente Manuel Zelaya.

“A pilhagem sistemática do nosso território está intimamente ligada à corrupção imperante no país, que recrudesceu de forma exponencial a partir do golpe de 2009, frente à demolição do Estado de Direito e ao assalto perpetrado sobre as instituições”, sustenta a Ofraneh.

“Há uma violação reiterada ao direito de território, que implica uma série de outras violações, como, por exemplo, o direito à alimentação, educação, saúde, ou seja, o direito à vida. Nos perseguiram, reprimiram, dividiram, deslocaram, prenderam e até assassinaram”, denunciou Teresa Reyes, dirigente garífuna da Ofraneh, a Opera Mundi.

A palmeira africana

Nas últimas décadas, Honduras viveu um acelerado processo de expansão do cultivo da palmeira africana, que deixou profundos impactos socioambientais na população negra, indígena e camponesa, que tem sido gravemente afetada em seu legítimo direito à terra, à alimentação e a uma vida digna.

Honduras conta hoje com cerca de 165 mil hectares semeados de palmeira africana e o objetivo do atual governo do presidente Juan Orlando Hernández é duplicar essa quantidade e fazer o mesmo com a produção de cana de açúcar. Segundo dados da Ofraneh, mais de 70% dos territórios garífunas já estão rodeados pelas grandes plantações de palmeira africana.

Enquanto em todo o norte de Honduras a produção agroexportadora vai se expandindo, o país continua sofrendo um déficit anual de produção de grãos básicos: cerca de 300 mil famílias (1,5 milhão de pessoas) continuam sem ter acesso à terra, metade da população rural vive com menos de um dólar por dia e 5,5 milhões de pessoas estão em situação de pobreza (67% da população), 3,8 milhões destas em pobreza extrema (dados de CEPAL, UNICEF e Observatório do Mercado de Trabalho da Secretaria de Trabalho).

“Esse modelo de produção atenta contra a soberania alimentar do país, sobretudo agora que o modelo baseado nas monoculturas está afetando gravemente a capacidade de a população satisfazer suas exigências alimentares”, recordou Miranda.

Nueva Armenia

A comunidade garífuna Nueva Armenia sofreu na própria pele os efeitos da expansão da palmeira africana. Na década de 1920, a população garífuna foi deslocada do território de Armenia, a poucos quilômetros da cidade de La Ceiba, pela transnacional Standard Fruit Company, e foi e realocada na marquem esquerda do rio Papaloteca.

Quando, no começo dos anos 2000, venceu a concessão outorgada pelo Estado hondurenho, a companhia de frutas norte-americana devolveu as terras para a prefeitura de Jutiapa, ignorando as reclamações do povo garífuna sobre suas terras ancestrais.

“Paulatinamente e de forma fraudulenta, a prefeitura foi repartindo as terras entre pequenos grupos de supostos camponeses, que começaram a cortar árvores para semear a palmeira africana. O processo de despejo foi se intensificando com o passar dos meses, aprofundando ainda mais o monopólio das terras e o plantio da palmeira africana”, afirmou Félix Valentín, diretor da Ofraneh, a Opera Mundi.

Encurralado e cercado, o povo garífuna começou um intenso processo de recuperação de suas terras ancestrais, expondo-se à reação violenta e repressiva dos produtores de palmeiras, protegidos pelas autoridades locais e nacionais.

“Em 8 de agosto de 2014, um forte contingente de policiais entrou no acampamento situado no território recuperado de Nueva Armenia e deteve 40 pessoas. Os policiais colocaram os companheiros garífunas em várias patrulhas e os levaram para Jutiapa, mantendo-os de forma ilegal por mais de 8 horas”, disse Valentín.

Segundo a Ofraneh, várias pessoas vinculadas aos produtores de palmeiras se aproveitaram da situação para queimar 11 casas com todos os seus bens. Enquanto isso, 80 membros da comunidade foram processados por “usurpação de terra”. Há ordem de captura de vários deles, enquanto a outros outorgaram medidas substitutivas à privação da liberdade, proibindo que se aproximem da zona de conflito.

“Nos acusam de estar usurpando terras que são do povo garífuna, mas são eles os usurpadores. Não queremos palmeira africana, mas continuar a cultivar nossa própria comida no território que nos pertence”, garantiu Carolina Castillo, habitante de Nueva Armenia e membro da Ofraneh.

Poucos meses depois, membros de Nueva Armenia foram atacados a tiros por desconhecidos, com um saldo de várias pessoas feridas. Em maio desse ano, a dirigente Jésica García sofreu uma tentativa de sequestro e já se perdeu a conta dos casos de ameaças e intimidações que a comunidade sofre.

A proliferação de projetos agroindustriais, turísticos, hidrelétricos e de mineração somada à presença do narcotráfico e do crime organizado já provocou o desaparecimento de algumas comunidades e está atentando contra a sobrevivência do povo garífuna.

Delegações de Triunfo de la Cruz e Punta Piedra, cujos casos foram levados à Corte Interamericana de Direitos Humanos, assistiram em 2014 audiências públicas efetuadas pelo braço dessa instância internacional em Costa Rica e no Paraguai, onde foram expostos os múltiplos problemas que têm sofrido durante décadas, assim como as repetidas violações dos direitos humanos a que têm sido expostas.

A Ofraneh acredita que a sentença da Corte Interamericana terá uma conotação paradigmática, porque gerará jurisprudência em relação aos povos indígenas e seus direitos ancestrais. “Dessa forma, não só o povo garífuna se beneficiará, mas todos os povos indígenas do mundo. Os Estados já não poderão ignorar os povos no momento de aprovarem projetos que afetam seus territórios”, concluiu Miranda.

Foto: Reprodução/Opera Mundi

Fonte: Opera Mundi

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