Portugal: O jogo da hipocrisia num sistema institucional apodrecido

Por Miguel Urbano Rodrigues.

Após a Guerra da Crimeia em 1856, o Imperio russo e a Inglaterra vitoriana estiveram na aparência à beira de um novo conflito armado até à assinatura da chamada Entente Cordiale em 1904.

The Great Game, O Grande Jogo, foi o nome pelo qual ficou conhecida a tensão permanente entre as duas potências imperiais, nascida de ambições incompatíveis pelo domínio do Afeganistão. Os diplomatas mentiam conscientemente, sugerindo a iminência de uma guerra que nem Londres nem Petersburgo desejavam.

Num contexto histórico muito diferente, o que aconteceu em Portugal nas últimas semanas faz lembrar esse jogo anglo-russo no século XIX.

O comportamento e as declarações do Presidente da República, dos principais dirigentes do Partido Socialista e do PSD e do CDS e a histeria especulativa do sistema mediático caraterizam bem esse jogo da hipocrisia e desacreditam um sistema institucional apodrecido.

Durante semanas choveram discursos, analises, comentários, especulações em torno do desfecho da situação criada pelo resultado das eleições legislativas.

O Presidente da República, antes de ouvir os partidos, incumbiu imediatamente Passos Coelho de iniciar diligências tendentes à formação de um governo capaz de assegurar «estabilidade política» ao país, consciente de que isso era impossível num Parlamento em que a coligação PSD-CDS perdeu a maioria absoluta.

Simultaneamente, Antonio Costa abriu conversações com o binómio PSD -CDS e com o PCP e o Bloco de Esquerda.
Correram mal as reuniões com a coligação e avançaram os encontros com os dirigentes comunistas e os bloquistas com vista à formação de «um governo de esquerda».

 Passos, Portas e Costa trocaram acusações em tom cada vez mais áspero.

Na semana que precedeu as reuniões do Presidente da República com os partidos abundaram as mesas redondas, as entrevistas e as consultas a constitucionalistas tidos por sábios. Cenários fantasistas foram montados por «especialistas» na televisão, na radio e nos jornais de «referencia».

A hipótese de um governo de gestão foi exaustivamente debatida numa atmosfera de intriga e de densa especulação.

No dia 15, ao acentuar-se a tensão entre os dirigentes da coligação e Costa, com troca de acusações pesadas, a maioria dos observadores admitia que aumentavam as probabilidades do chamado «governo de esquerda».

Subestimavam a decisão de Cavaco e as clivagens existentes no PS onde um influente sector encara com restrições um entendimento com o PCP e o Bloco de Esquerda. Francisco de Assis, porta-voz dessa tendência, foi muito claro ao afirmar a sua preferência por um governo PSD-CDS.

Mas, os media e os comentadores de serviço passaram a apresentar a nomeação de Passos Coelho como uma certeza.

No Expresso, o diretor, os diretores adjuntos e os principais colunistas tomaram partido em defesa dessa solução. O grande capital e os media por ele controlados reagiram com alarme às declarações de Antonio Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa quando informaram o Presidente da República que estavam reunidas condições para que o PS formasse um governo da sua iniciativa com apoio maioritário na Assembleia da Republica.

A primeira fase do desfecho (provisório) é conhecida.

Na noite do dia 22, Cavaco Silva dirigiu-se ao País. Num discurso que terá sido o mais reacionário da sua carreira indigitou Passos Coelho como  Primeiro-ministro, convidando-o a formar governo. Desrespeitando a Constituição e a Assembleia da República, insultou os partidos da oposição sem os nomear, qualificou de catastrófica a alternativa à nomeação do dirigente do PSD, e, numa manobra de chantagem, lançou um apelo à dissidência dos deputados do PS, instando-os a viabilizar o programa do governo da coligação.

Pode-se dizer que o tiro saiu pela culatra. Na tentativa desesperada de salvar o seu partido, o Presidente da República falou como dirigente de uma seita, produzindo o efeito oposto ao desejado. Conseguiu unir o PS em vez de o dividir. Horas depois, a comissão política dos socialistas mandatou a sua bancada parlamentar para apresentar uma moção de rejeição ao governo quando Passos o apresentar na Assembleia da Republica.

Como o PCP e o Bloco de Esquerda tomaram antecipadamente a mesma decisão, o II Governo da Coligação que arruinou o país vai nascer morto.

 UM PS CAMALEÔNICO

Muitos comentaristas com banca na televisão e colunas nos jornais, refletindo sobre a situação de vazio político que resultará do derrubamento pelo Parlamento do governo natimorto de Passos & Portas, entregam-se agora a frenéticas especulações sobre o futuro imediato.

Cavaco sugeriu que não dará posse a um governo do PS apoiado pelo PCP e o Bloco de Esquerda. Tal intenção configura um desafio insolente à Constituição e ao Poder Legislativo. Seria um ato de contornos ditatoriais, incompatível com a sua anunciada decisão de não colocar o país durante quase muitos meses sob um governo de gestão derrubado pelo Parlamento.

Tremendas pressões serão exercidas sobre o Presidente para dar o dito por não dito e, descendo à Terra, incumbir Antonio Costa de formar governo.

Admitindo que esse seja finalmente o desfecho político da crise institucional, não encaro com otimismo o futuro próximo. O acordo firmado pelos três partidos da oposição não dissipa as nuvens acumuladas no horizonte.

Será mesmo um «governo de esquerda» como lhe chamam os media?

A minha resposta à pergunta é negativa, mas justificar essa posição gera em mim um sentimento doloroso.

O Partido Socialista é presentemente um Partido neoliberal como a maioria dos seus congéneres europeus. Quando no governo realizou sempre políticas de direita e quando na oposição foi cúmplice de políticas de direita.

No início da Revolução Portuguesa, o PS, criado na Alemanha Federal, surgiu em Portugal com um programa influenciado pelo marxismo. Então tinha cabimento falar se de uma «maioria de esquerda» quando socialistas e comunistas elegiam muito mais deputados do que a direita.

Mas o PS, sob a direção de Mário Soares, reescreveu o programa, trocou o vermelho da bandeira por rosa, passou a exorcizar o marxismo e engavetou o socialismo. No Parlamento aliou se com frequência à direita, primeiro ao CDS, e depois ao PPD-PSD (Bloco Central).

Arvorando o estandarte de uma coisa autointitulada Socialismo de Rosto Humano, combateu sistematicamente o PCP, ombro a ombro com as forças mais reacionárias da sociedade portuguesa. Desempenhou um papel decisivo na destruição da Reforma Agraria e na ofensiva contra as conquistas de Abril.

 Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves apontam-no como o principal responsável pela contrarrevolução. O Partido Socialista foi no Governo e depois na Presidência da Republica o instrumento de ação da sua estratégia reacionária, a que Guterres, Sócrates e Seguro deram continuidade.

QUE FUTURO NO HORIZONTE?

Pode um governo socialista saído do atual Parlamento realizar uma obra mais nociva do que o cessante de Passos & Portas?

Não.

Mas vai porventura um governo liderado por Antonio Costa desenvolver uma política que responda minimamente às aspirações das vítimas da obra devastadora da coligação reacionária PSD-CDS?

Não creio. É muito improvável que essa esperança se concretize. Sejam quais forem os acordos a que o PS chegar com o Bloco de Esquerda e o PCP, os riscos, sobretudo para os comunistas, serão sempre grandes e as possibilidades de os evitar escassas. As áreas de eventuais acordos entre projetos tao diferentes são aparentemente poucas. É minha convicção que somente a intensificação da luta de massas, ao tornar-se prioritária como frente de combate contra a herança devastadora dos últimos governos, pode abrir perspetival de sobrevivência a um governo frágil de Antonio Costa.

Mas estará a direção de um Partido como PS aberta a uma alteração tao profunda da sua política tradicional? Não creio.

Raras vezes em Portugal slogans como «a nossa democracia» e «os superiores interesses do país» foram usados insistentemente e com tanta impropriedade.

Para mal do povo português o regime da «democracia representativa», que assegurou liberdades e direitos fundamentais, tem funcionado na prática desde o início da recuperação capitalista como uma ditadura económica da burguesia com fachada democrática.

As perspetivas de evolução da crise não justificam sentimentos de euforia.

Não encontro na História exemplos de acordos de governo entre socialistas e comunistas- mesmo quando a intervenção destes se limitou ao apoio parlamentar- que tenham produzido resultados positivos duradouros. Alguns, como a Frente Popular Francesa de 1936 e o Governo Provisório de De Gaulle em l944-46 tiveram um começo auspicioso, mas todos  acabaram mal.

Como comunista, cumpro um dever ao escrever este artigo difícil e incómodo.

VILA NOVA DE GAIA,23 de Outubro de2015

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