Portal Estadão “erra” tradução. Relatório da ONU não diz que políticas de igualdade racial “fracassaram”

Rita Izsák Ndyae, relatora especial de minorias da ONU

Por Dennis de Oliveira.

O portal Estadão (replicado nos portais UOL, IG e outros) noticiou no dia 14 de março que as políticas de igualdade racial “fracassaram” no Brasil segundo informe da relatora da ONU para direito de minorias, Rita Izak.

A notícia foi amplamente divulgada, coincidentemente após as manifestações de domingo contra o governo federal, nas quais as pesquisas constataram que a esmagadora maioria era composta por brancos e de classe média-alta. Sem contar as várias imagens de apologias explícitas ao racismo feitas na manifestação. O incômodo da mídia hegemônica: cristalizar a idéia de que há uma clivagem racial entre os que defendem e os que são contrarios ao atual governo.

A coluna Quilombo teve acesso à íntegra do relatório que pode ser obtido clicando aqui. O interessante é que as matérias que saíram nos portais não colocaram o link que permite acesso ao texto original. O internauta tem que confiar na interpretação da notícia.

E ela é falsa porque induz à idéia de que “de nada adiantou” o que foi feito de políticas de ação afirmativa, uma das marcas da gestão Lula/Dilma.

Em duas passagens, pelo menos, o relatório da relatora Rita Izsák, reconhece o esforço do governo brasileiro no enfrentamento do racismo no país. Na página 9, o relatório afirma que “o Brasil tem sido um líder regional no desenvolvimento de políticas de ação afirmativa” e cita as várias legislações aplicadas nos últimos anos referentes a ações afirmativas, como a lei de cotas. Na página 18, a  relatora afirma que “houve um progresso significativo no nível político e legislativo no combate ao racismo estruturalque continua a dominar a sociedade brasileira.” Adiante afirma ainda que “com efeito, dado que muitas destas iniciativas foram adotadas apenas na última década, a Relatora Especial  elogia o Brasil sobre as medidas tomadas para enfrentar seu legado de 500 anos de escravatura, o racismo e a injustiça contra grupos minoritários, incluindo os afro-brasileiros.”

Logo após estas afirmações, o texto  original em inglês afirma que “however with regard to Afro-Brazilians, despite more than two decades of targeted policies and actions designed to advance their rights, there has been afailure to address the entrenched discrimination, exclusion, and poverty faced by these communities, particularly those living in favelas, periferias, and Quilombos (…)”.

A palavra que foi mal traduzida aqui é “failure” que pode significar “fracasso” ou “falha, insuficiente”. Pelo contexto do relatório, em que a relatora elogia as iniciativas do governo brasileiro e considera que o racismo é estrutural, o que ela aponta é que as políticas não foram um fracasso, mas sim insuficientes.

E em várias partes do relatório, esta insuficiência é apontada. Por exemplo, o fato das cotas no serviço público não atingirem os cargos em comissão, a representação nos Legislativos e no Judiciário (itens 46 e 47 na página 10 do relatório). Note-se: quem está sendo criticado são os poderes Legislativo e Judiciário, este último que tão celebrado tem sido pela mídia hegemônica.

Outra insuficiência é no combate à violência que atinge, principalmente, a juventude negra. Na mesma página 10 do relatório, na parte V, fala-se do crescimento dos assassinatos de jovens negras e negros nas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro. O relatório é taxativo ao culpar a Polícia Militar, os esquadrões da morte e justiceiros por esta matança. E aponta a impunidade destes atos.

Um outro ponto destacado pelo relatório é a criminalização dos afrodescendentes brasileiros – “75% da população prisional brasileira é composta por negros” e o relatório aponta, entre outras coisas, a política de “guerra às drogas”, o racismo por parte da repressão policial, entre outras.

O relatório também aponta a não titularização das terras quilombolas e a perseguição e violência contra as religiões de matriz africana como entraves para o enfrentamento ao racismo.

O que se depreende do relatório de Rita Izák? Não que as políticas de ação afirmativa não serviram para nada como os títulos dos portais da mídia hegemônica quiseram fazer crer, mas que o racismo é estrutural e é preciso ir muito além destas políticas.

A relatora critica a redução da maioridade penal, a repressão policial, o elitismo do Judiciário, a intolerância religiosa praticada por fundamentalistas pretensamente evangélicos, a composição elitista e branca do atual Parlamento… No final, qual campo político a relatora da ONU está criticando?

*Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)

Fonte: Revista Fórum

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