Por que ultradireita teme um estado de emergência

No passado, governantes usaram o pânico coletivo para controle autoritário. Hoje, na pandemia, Trump e Bolsonaro temem alimentar qualquer subjetividade coletiva — um ato político — e escancarar a falência do imperativo da acumulação

Foto: Pixabay

Por Todd McGowan, no The Philosophical Salon | Tradução: Equipe do Djanira

O aspecto mais surpreendente da pandemia do coronavírus é a relutância de líderes com ambições autoritárias, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, em declarar o estado de emergência. Fazer isso aumentaria o poder do Estado e lhes daria um controle sem precedentes sobre as atividades das pessoas, que é exatamente ao que os autoritários aspirantes anseiam. Porém, longe de aproveitar a oportunidade de declarar o estado de emergência, Trump, e seus apoiadores na FOX News, decretaram que o surto de coronavírus era um não-evento, mesmo quando ele começou a explodir. Alguns conservadores chegaram ao ponto de rotulá-lo como uma conspiração esquerdista. Se Trump tem inclinações autoritárias e seus seguidores da FOX News querem impulsionar sua agenda autoritária, então, o que explica essa relutância em abraçar as possibilidades de expansão do poder estatal que o coronavírus ocasiona?

A relutância tem muito a nos ensinar. Ela revela uma contradição onde no passado vimos simbiose. A relutância de Trump em declarar um estado de emergência demonstra uma contradição oculta entre capitalismo e poder de Estado. Embora o estado sirva mais frequentemente aos interesses do capital, um desastre natural traz à tona o desalinhamento entre ambos. Torna claro que somos criaturas coletivas, não importa o quanto a lógica do capital insista que somos mônadas isoladas, mesmo que a preocupação com a coletividade, no caso [da pandemia], exija total isolamento.

Autoritários gostam de declarar emergências, o que lhes dá uma justificativa clara para tomar medidas políticas extremas. É por isso que os teóricos têm tradicionalmente associado tais declarações ao fascismo. Na oitava tese de “Sobre o Conceito de História”, o teórico antifascista Walter Benjamin diferencia entre uma declaração de estado de emergência e um “estado real de emergência”. A questão é transformar o estado de emergência declarado em uma emergência real que abalaria os fundamentos da sociedade capitalista. Para ele, a declaração do estado de emergência é uma tentativa de manter uma emergência real à distância, para facilitar o tipo de controle autoritário que abafaria qualquer possível revolta emancipatória. Outros pensadores, notadamente Giorgio Agamben, têm seguido Benjamin nessa linha de pensamento.

Nem Benjamin nem Agamben fazem distinção entre as declarações de emergência. Todas são iguais em suas lógicas. Mas a emergência que resulta de uma catástrofe natural é fundamentalmente diferente da emergência provocada pela guerra. A guerra é sempre um fenômeno conservador porque mobiliza a distinção amigo/ inimigo, que é o ponto de partida da política conservadora. O filósofo ultraconservador Carl Schmitt vê esta distinção como a condição sine qua non da política como tal, mas isto é simplesmente um reflexo de sua orientação política. A política de esquerda ou emancipatória começa com uma coletividade que não requer um inimigo. A introdução de um inimigo indica o triunfo do pensamento conservador, mas desastres naturais como o coronavírus não se prestam à distinção amigo/inimigo.

Em certo sentido, Donald Trump e os especialistas da FOX News tiveram razão em considerar o coronavírus um fenômeno de esquerda. De sua própria perspectiva política, Trump estava certo em resistir a declarar o estado de emergência. Se o fizesse, afirmaria o coletivo e arrancaria os indivíduos de seu isolamento ilusório. A declaração de um estado de emergência durante um desastre natural nos emancipa da falsidade da subjetividade capitalista. Esta declaração obriga-nos a considerar-nos do ponto de vista do coletivo e a deixar de lado os nossos interesses pecuniários individuais.

Todas as catástrofes naturais colocam inerentemente a ordem social no terreno da política emancipatória, porque revelam a prioridade do coletivo sem recorrer a nenhum inimigo. Mesmo quando um desastre natural exige a construção de firmes barreiras nacionais e regionais, ele une as pessoas na sua separação, em vez de estabelecer oposição entre nós e eles. Trump e a tentativa desesperada de sua equipe de criar um inimigo – chamando o coronavírus de “vírus chinês” ou “Kung Flu” – refletem sua compreensão implícita da política dos desastres naturais. Um desastre natural exige que mesmo os líderes conservadores comecem a procurar respostas de esquerda, e é por isso que vemos republicanos no Congresso dos EUA apoiarem uma versão de renda básica universal, embora de forma temporária e bastarda. Esta iniciativa legislativa mostra que agora os conservadores estão jogando no território da esquerda como resultado do vírus.

Obviamente, nada garante um resultado emancipatório. Se os líderes conseguirem estabelecer uma distinção amigo/inimigo que a maioria das pessoas aceite, o desastre natural se tornará semelhante a uma guerra. Dessa maneira, ocasionará uma virada autoritária e deixará de ser um fenômeno emancipatório. Mas isso exigirá um imenso trabalho ideológico da parte dos líderes conservadores. Isso vai contra a natureza do evento em si.

Em meio ao desastre natural em curso, o Estado deixa de aparecer como um empregado das exigências do mercado. A lógica do capital exige a acumulação ininterrupta de mercadorias, que é o que exclui a resposta do Estado ao desastre. O desastre torna obscena a lógica do capital. Quando a ameaça do vírus começou a se intensificar, no dia 5 de março, Rick Santelli apareceu na CNBC para expressar essa lógica em termos não adulterados. Ele defendeu o reinado livre do vírus, a fim de minimizar a perturbação econômica. Embora isso resultasse em hospitais abarrotados e milhões de mortes, manteria o fluxo do capital. Embora a pressão pública tenha forçado Santelli a recuar, seu sentimento inicial fornece uma boa visão dos ditames que o capital exige.

Cheio de preocupações com a segurança pública durante a epidemia do coronavírus, o Estado não seguiu o conselho de Santelli. Não seguiu a lógica do capital. Em vez disso, Trump, apesar de seu compromisso com a acumulação incessante, introduziu restrições à economia capitalista. Como resultado do desastre, mesmo líderes estatais conservadores, como Trump, têm que implantar o poder estatal de uma forma diretamente anticapitalista. Embora o objetivo final de Trump seja, sem dúvida, salvar a sociedade capitalista, o fato de que ele deve agir para salvar vidas às custas do capital revela a tensão subjacente entre o Estado e o capital. Cabe a nós levar a tensão ao seu ponto de ruptura nos meses e anos que se seguem.

Essa luta não será simplesmente uma luta contra as forças do capital e seus representantes. Deve também opor-se àqueles de esquerda que permanecem intransigentes na sua hostilidade ao Estado. Isso inclui os teóricos do biopoder, como Giorgio Agamben e Roberto Esposito, os quais têm demonstrado, em suas respostas à catástrofe do coronavírus, o perigo inerente ao próprio conceito de biopoder. Esse conceito não os leva a uma suspeita total do Estado combinada com um completo silêncio sobre o capital – uma combinação mortal não só em tempo de crise?

Os múltiplos e longos discursos de Agamben investem contra uma resposta coletiva ao surto. Ele não vê nada de louvável na demonstração de uma preocupação pela vida às custas do capital, apenas um fracasso em viver à altura dos nossos ideais de liberdade e compaixão. Agamben acredita que, ao nos retirarmos para nossas habitações particulares em nome da segurança pública, traímos o que ele chama de “a unidade de nossa experiência vital”. Ele chega a censurar o Papa Francisco por não visitar os doentes do coronavírus da forma como o seu homônimo visitou os leprosos. Incapaz de ver a preocupação pelos outros no seio desse retiro da interação, Agamben acaba tomando o partido dos apologistas da versão mais voraz do capitalismo.

O que a pandemia do coronavírus revela é que, numa era de capitalismo irrestrito, agir em nome da sobrevivência coletiva é um ato político. É isso que a teoria do biopoder, que vê o estado como um local de poder que nos vigia, não consegue reconhecer. A capacidade de parar a produção e o consumo capitalista desenfreados atesta a existência de compaixão que resiste à lógica da mercadoria. Neste momento, a declaração do estado de emergência representa um ponto, no qual o coletivo diz não ao imperativo da acumulação.

Uma reconsideração do estado de emergência e do poder do Estado nos tempos do desastre do coronavírus nos permite reiniciar o modo como pensamos sobre a esquerda e a direita. Podemos ver possibilidades emancipatórias em locais que costumavam ser pensados como domínio do conservadorismo. O Estado não precisa mais ser visto como uniformemente despótico. Dessa forma, maximizamos a oportunidade que nos foi dada pelo desastre. Os desastres podem não ser capazes de nos libertar, mas podem nos mostrar um caminho para a emancipação.

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