Por que os negros não apresentam programas de televisão

Por Henrique Santana e Iuri Salles.

Em pesquisa exclusiva organizada pela Vaidapé, levantamos os dados sobre os apresentadores e apresentadoras de televisão no Brasil para quantificar o racismo nas emissoras de TV

Depois que a Vaidapé decidiu quantificar o número de apresentadores pretos no país, entramos em contato com as principais emissoras de TV da rede aberta: Cultura, SBT, Rede Globo, Rede Record, RedeTV!, Gazeta e Bandeirantes. A dificuldade em conseguir números claros fornecidos pelas empresas fez com que a gente organizasse uma pesquisa para dimensionar como é a divisão racial entre os apresentadores da televisão brasileira.

Checamos 204 programas das sete emissoras citadas que foram transmitidos entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro de 2017. O resultado foi um levantamento de 272 apresentadores que compõem as grades de programação. Ainda que a maioria dos programas sejam exibidos em rede nacional, para os casos que variam de região para região foi adotado como padrão a programação de São Paulo. Mesmo assim, a pesquisa dá um bom panorama da televisão brasileira.

As primeiras respostas obtidas não surpreendem. Apenas 3,7% dos apresentadores são negros. Em valores absolutos, de todos os analisados, foram apenas 10 apresentadores negros contra 261 brancos. De acordo coma Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2014, organizada pelo IBGE, 53% da população brasileira é de pretos ou pardos, grupos agregados na definição de negros.

Procuramos utilizar como critério de análise a autodeclaração dos apresentadores. Como em muitos casos foi complicado encontrar estas declarações, o critério secundário foi o de observação dos pesquisadores.

“Você é muito graciosa. Embora sendo a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade”

– Silvio Santos, apresentador e proprietário do SBT

A emissora que apresenta maior diversidade é a RedeTV!, onde pouco mais de 9% dos apresentadores são negros. Já a a Record e o SBT são as campeões no quesito branquitude. Ambas não possuem sequer um apresentador negro figurando nos programas analisados. Na emissora de Silvio Santos, a única apresentadora negra que constava na grade de programação era a jornalista Joyce Ribeiro, que foi demitida no início deste ano.

Dois meses antes da demissão de Joyce, Silvio Santos protagonizou um caso de racismo explícito durante o Teleton de 2016. Na ocasião, o apresentador e proprietário da emissora ao entrevistar Daiane, dançarina que se apresentava no programa, afirmou: “Você é muito graciosa. Embora sendo a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade”.

Não foi o primeiro comentário desse tipo proferido pelo dono do SBT. Também em 2016, ele havia dito a uma criança que se apresentava em um de seus programas que seu cabelo estava “chamando muita atenção”.

Além da falta de representatividade na televisão, é possível observar que apresentadores negros estão majoritariamente em programas culturais e de entretenimento. Nos casos analisados, 80% dos negros estavam em programas deste tipo e 20% protagonizavam programas de caráter religioso. Na programação jornalística, educativa e infantil não figurava nenhum apresentador negro.

Também foi possível comparar na pesquisa a média de tempo que brancos e negros ficam no ar. Em uma situação hipotética, se a grade da televisão brasileira fosse composta apenas por programas com apresentação, em 24 horas, apenas 6 minutos da grade seriam apresentados por negros.

O que diz a academia?

Conversamos com um dos poucos professores negros do curso de jornalismo da USP, Dennis Oliveira, doutor em comunicação social e militante do movimento negro, pra saber o que ele achava da presença mínima de negros na programação da televisão. Para ele, “é racismo e discriminação com certeza, porque hoje você tem um grande número de negros que poderia desenvolver essa função”.

“Uma das manifestações da discriminação racial é você interditar a introdução de homens e mulheres negras em posições de visibilidade”

– Dennis Oliveira, doutor em comunicação social e militante do movimento negro

A escolha de pesquisar apenas os apresentadores foi de esclarecer como se dá a divisão racial no que é, provavelmente, a função de maior protagonismo e visibilidade da televisão. Para Dennis, a discrepância nos números esclarece o preconceito institucional que vigora nas empresas. “Uma das manifestações da discriminação racial é você interditar a introdução de homens e mulheres negras em posições de visibilidade”, pontua.

O professor também reflete sobre como a TV embranquecida afeta um jovem comunicador negro, que não consegue ver quadro de referências no principal canal de comunicação utilizado pelos brasileiros. “Ele não se identifica e cria a falsa ideia de que ele não pode estar lá. Então você limita as expectativas profissionais desse jovem. Mais do que isso, vai se constituindo uma estética ariana”, conclui.

Os dados da pesquisa apontam para um racismo mais escancarado do que “velado”. Mesmo com a esmagadora presença branca, a Rede Globo, por exemplo, não enviou informações sobre seus apresentadores com a justificativa de não separar seus funcionários por raça.

O que dizem os apresentadores negros?

Para ter uma visão de dentro das emissoras, entrevistamos a Roberta Estrela D´Alva, uma das poucas apresentadores negras que está no ar em uma grande emissora. Mestre em comunicação semiótica pela PUC de São Paulo e idealizadora do “ZAP! Zona Autônoma da Palavra”, primeiro campeonato de poesias brasileiro, ela apresenta atualmente o programa “Manos e Minas” na TV Cultura.

Existe preconceito dentro da televisão brasileira? E como combater isso?

A televisão e a mídia não estão separadas de toda uma estrutura cultural dentro da qual a gente vive, que ainda é racista e machista . Então claro que, considerando historicamente a representatividade na televisão brasileira , o espaço para negros e negras é muito reduzido , ainda mais se considerarmos que mais da metade da população desse país é negra.

Ser uma mulher negra dentro da televisão brasileira, ainda mais em um programa onde também estou pautando, era um lugar de fala, um ponto de vista que está muito focado nessas questões de gênero e raça. Todos sabem que minha pauta  central no Manos e Minas desde que entrei é dar visibilidade à mulher negra.

Temos apenas dez negros apresentando programas na TV aberta, você acha que existe alguma justificativa pra isso?

Quatrocentos anos de sistema escravocrata que contaminou todas as estruturas de poder nesse país. A mídia  e a polícia se tornaram mecanismos de controle e existem para servir a um poder hegemônico. E esse poder é invariavelmente masculino, eurocêntrico e branco. Então está explicado.

Você teve alguma apresentadora negra como referência? Lembra do trabalho de alguma?

Acho que a gente tem aquela coisa inconsciente do Fantástico né?  A Glória Maria chamava a atenção por ser a única. Mas se for pra falar de gente preta na televisão, acho que fui mais influenciada pelo Mussum do que por qualquer apresentadora ou apresentador. E olha que os Trapalhões tinham piadas racistas, homofóbicas e machistas pra caramba, hein…

A televisão brasileira é racista? Você se sente representada pela programação da TV aberta?

A televisão é racista na medida em que a sociedade também é.  Eu não tenho televisão há uns 15 anos.  Assisto as coisas pela internet. Até o meu programa. Mas esses dias vi um “blackface” num desses programas de humor. É lamentável… A Angela Davis, quando veio para o Brasil, ficou em choque com as novelas, com o tanto de atrizes brancas de olhos azuis e nenhuma representatividade negra. E é chocante mesmo.

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Como foi feita a pesquisa

A pesquisa foi feita a partir dos dados sobre a programação fornecidos pelo site oficial de cada emissora, considerando programas que foram exibidos no segundo semestre de 2016 e no primeiro de 2017. São considerados para essa pesquisa, apenas programas com apresentadores fixos.

Os programas reprisados e de Reality Show organizados por temporada foram considerados na pesquisa, quando não anunciado o cancelamento. Programas voltados exclusivamente para a venda de produtos, bem como eventos esportivos e de celebração religiosa transmitidos ao vivo, ainda que com apresentadores, não foram considerados.

Como citado anteriormente, quando possível, a pesquisa analisou a cor dos apresentadores com base na autodeclaração. Para os casos em que a autodeclaração não foi encontrada, o critério de avaliação se deu pela observação dos pesquisadores.

Mais resultados da pesquisa e a planilha completa do levantamento podem ser baixados clicando nos links abaixo.

Baixe aqui o levantamento 
Baixe aqui o relatório da pesquisa

Fonte: Vaidapé.

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