Por que o grupo terrorista Al Shabaab, da Somália, escolheu o vizinho Quênia como alvo?

Por Patrícia Dichtchekenian.

Na última semana, o massacre à Universidade de Garissa resultou na morte de 148 pessoas — a maioria estudantes — no Quênia. A autoria do atentado foi reivindicada pelo Al Shabaab, um grupo islâmico extremista oriundo da Somália que já matou mais de 400 pessoas nos últimos dois anos em atentados no território queniano. Mas por que eles realizam tantos ataques ao país vizinho?

Para entender a crise queniana é preciso primeiramente compreender o contexto histórico da Somália. Desde a queda do ditador Mohamed Siad Barre, que esteve no poder de 1969 até 1991, prevalece uma guerra civil em solo somali.  Com o colapso do governo central, as cortes baseadas na sharia (lei islâmica) tornaram-se o principal sistema judicial para reestabelecer a ordem no país.

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garissaUm dos sobreviventes da tragédia na universidade recebe ajuda para entrar no ônibus que o levará para casa

Lentamente, o mecanismo foi se tornando responsável por outros setores sociais, como saúde e educação, apesar da existência de um governo de transição no país. Nos anos 2000, essas cortes se consolidaram como uma milícia chamada União dos Tribunais Islâmicos, que passou a entrar em conflito com o governo interino, então apoiado por tropas etíopes.

Esse contexto instável serviu de terreno fértil para a formação do Al Shabaab como braço militar de caráter mais radical da União dos Tribunais Islâmicos. Em junho de 2006, a organização foi formalmente fundada, passando a realizar ataques contra o governo provisório e contra as forças etíopes.

Quem são Al Shabaab?

Um dos principais homens por trás da ascensão do grupo extremista é Aden Hashi Farah “Ayro”, um combatente somali formado nos campos de treinamento afegão conduzidos por Osama bin Laden (1957-2011). “Ayro” era próximo do Sheikh Hassan Aweys, uma das principais figuras de liderança à frente dos Tribunais Islâmicos, consolidando, juntos, o nascimento da organização Harakat al Shabab al Mujahideen, mais conhecida como Al Shabaab (ou “a juventude” na tradução).

EFE/ arquivo
somalia4Civis fogem da cidade de Buulumareer sob ocupação de milícia islâmica: crise social e alimentícia devasta Somália

A proposta dos membros do Al Shabaab é instaurar um estado wahhabista na região do chifre da África oriental. A seita é oriunda do islã sunita da Arábia Saudita criada por Muhammad ibn Abd-al-Wahhab (1703-1792). Trata-se de um tipo de salafismo, isto é, de um movimento religioso que visa a um retorno às fontes e aos princípios essenciais do islã. Muitas vezes, o wahabismo é descrito como “fundamentalista”.

Entre 2008 e 2011, os insurgentes chegaram a tomar controle de mais de dois terços do território somali, inclusive a capital, Mogadíscio. Ameaçadas pelo grupo extremista, as tropas da Etiópia foram substituídas por soldados da força de paz da Amisom (Missão da União Africana para Somália), criada para combater a insurreição islâmica.

O sucesso da missão só aconteceria entre agosto de 2011 e setembro de 2012, quando as tropas da União Africana conseguem retomar Mogadíscio e o porto de Kismayo, importante pólo econômico da região, liberado principalmente por soldados provenientes do Quênia.

Após essas perdes, a liderança do Al Shabaab teve sua influência bastante enfraquecida. Apesar disso, o grupo ainda continuou no controle de vastas áreas rurais da Somália, especialmente no sul do país, onde há uma linha fronteiriça de quase 700 quilômetros que separa a nação do Quênia.

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soMALIA(3)Exército da União Africana em atuação contra militantes do Al Shabab na província de Baixa Shabelle, na Somália

Até os ataques de 2011, o governo queniano mantinha distância de seu vizinho em pleno caos político. A meta das ofensivas daquele ano era erradicar definitivamente os membros da organização extremista, que apresentavam uma condição frágil à época.

No entanto, a situação ainda politicamente frágil da Somália serviu de substrato de sobrevivência para o Al Shabaab. Desde o início da guerra civil há mais de duas décadas, os somalis são conhecidos, por exemplo, pela prática da pirataria com o sequestro de navios e petroleiros estrangeiros na região do Mar Arábico — o que isolou economicamente o país ainda mais.

Somado ao caos institucional somali, o Al Shabaab ganhou novo fôlego meses depois, quando, em fevereiro de 2012, anunciou vinculação formal à Al Qaeda — embora os laços com a rede terrorista já fossem conhecidos com a atuação de “Ayro” na criação do grupo.

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quenia6Famílias lamentam morte de estudantes em massacre durante missas realizadas durante a Páscoa

Além de atacar o próprio país de origem, os insurgentes planejam atentados ao Quênia como represália não apenas pela retomada do porto e de outras regiões somalis, mas também como forma de punir os quenianos pela sua marcante atuação na Amisom para combater os seus membros extremistas.

Junto com o ataque à Universidade de Garissa, outro atentado que ganhou holofotes da imprensa internacional aconteceu entre 21 e 24 de setembro de 2013, no luxuoso shopping West Gate em Nairóbi, capital do Quênia. Na ocasião, os insurgentes mataram 67 civis.

Atualmente, estima-se que o Al Shabaab tenha de cinco a nove mil combatentes. Nos últimos tempos, o grupo se tornou um dos principais alvos do governo norte-americano, que em setembro passado matou seu líder – Ahmed Abdi “Godane” – uma das 10 pessoas mais procuradas no mundo por atividades terroristas, segundo a lista do Pentágono.

Contudo, o episódio da semana passada mostra que o aniquilamento da liderança não foi suficiente para acabar com a influência do grupo no Chifre da África. O massacre Garissa ensina que a abordagem na luta contra organizações de caráter extremista está longe de ser adequada e revela a complexidade das divisões étnicas, religiosas e culturais no interior da esquecida história do continente africano.

Fonte: OperaMundi.

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