Por que não revogamos a lei da gravidade? – Uma contribuição para um giro epistêmico na América Latina

Por Paulo Sérgio P. Mendes.

“…Do salário injusto, 
… da humilhação, da tortura, 
do terror, 
[retiremos] algo e com ele [construamos] um artefato
um poema
uma bandeira”
(Ferreira Gullar)

“Caliban:
‘You know very well that I’m not interested in peace.
I’m interested in being free!
Free, you hear?’”
(CESAIRE, Aimé, A Tempest)

“Colonización y civilización?
… qué es, em su principio, la colonización?
(CÉSAIRE, Aimé, Discurso sobre el colonialismo)

 

No artigo “Movimentos tentam ‘revogar’ a lei da gravidade”, publicado no jornal O Estado de São Paulo (São Paulo-Brasil), em 04 de fevereiro de 2001, o escritor peruano, Mario Vargas Llosa, faz severas críticas a nosotros, latino-americanos, por uma suposta não aceitação do aqui e do agora e refugiar-nos de maneira atávica no país da imaginação. No entanto, Vargas Llosa afirma que essa fuga não foi em vão, pois graças a este artifício, a América Latina pode se orgulhar de personagens como Borges, Garcia Marques, Neruda, Octavio Paz e tantos outros. Porém, insiste que esta fantasia nos leva, depois do continente africano, a ser uma região de “fome, atraso, dependência, desigualdades econômicas e violência”; que lutar contra a globalização é ir de encontro a algo irreversível; que os investimentos estrangeiros em nossos países trarão benefícios ou não se os mesmos forem administrados por governos democráticos ou corruptos, respectivamente. Entende Vargas Llosa que a globalização nos permitirá queimar etapas para o desenvolvimento e caberá aos países em desenvolvimento exigir que os desenvolvidos abram seus mercados para as nossas commodities. Por fim, Vargas Llosa arrisca uma lei histórica: “O progresso social e econômico está em relação diretamente proporcional ao tédio vital que significa acatar a realidade e inversamente proporcional à efervescência espiritual que resulta da insubordinação contra ela.”

Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura, feito marquês pelo rei Juan Carlos I, da Espanha, e ex-candidato à Presidência da República do Peru, em 1990, pela coligação neoliberal Frente Democrática, ao criticar a nossa teimosia em não acatar a realidade, além de deixar claro o seu posicionamento político-ideológico, raciocina com a ideia d’A Realidade dada, cabendo-nos, tão-somente, (des)cobri-la e buscar as suas leis; e ainda, defende uma dicotomia também dada: Realidade (espaço da política, da economia, da ciência e da técnica; o espaço do possível) versus imaginação (espaço das artes e das utopias). Inclusive, no mesmo artigo, para exemplificar a nossa aversão à Realidade, aborda de maneira superficial dois acontecimentos ocorridos no nordeste brasileiro: a Revolta dos Quebra-Quilos (1874-1876) e a Guerra de Canudos (1896-1897). Aquela foi uma sublevação contra o sistema métrico decimal que o governo imperial implantou para incluir o Brasil no sistema de pesos e medidas dominantes no comércio internacional; esta, segundo Vargas Llosa, ocorreu porque os sitiantes de Canudos eram contra a recente república brasileira (1889). Faltou a Vargas Llosa, para ambos os conflitos, entender a complexidade de construções de realidades superpostas constituídas por fatos e artefatos heterogêneos imbricados na trama nordestina de quatro séculos de miséria, fome, exploração, mandonismo e uma estrutura latifundiária monocultora e escravocrata. Poderíamos aceitar que o padre Ibiapina (um dos líderes da Revolta dos Quebra-Quilos) tenha considerado sacrilégio a mudança dos pesos e medidas, entretanto, o governo imperial ao impor o sistema métrico decimal e novos impostos à população pobre nordestina, desrespeitou, mais uma vez, hábitos e costumes locais. Podemos aceitar que o líder de Canudos, Antonio Conselheiro, fosse um monarquista, mas a população de Canudos lutou contra a estrutura latifundiária nordestina e suas mazelas. 

Vargas Llosa vê a luta contra o sistema métrico decimal, contra a república ou contra a globalização como o mesmo que tentar revogar a lei da gravidade. E com o objetivo de exemplificar tais argumentos, cita o Manifesto do poeta peruano, dito surrealista, Augusto Lunel (pseudônimo de Augusto Gutiérrez): “Estamos contra as leis, a começar pela lei da gravidade.” 

Globalização, subordinação aos interesses estrangeiros e a consequente privatização dos serviços públicos e a desnacionalização da economia dos países periféricos não são naturais (inevitáveis). São instrumentos de manutenção de uma divisão internacional do trabalho, através da qual os países periféricos continuarão produzindo mercadorias agrícolas e extrativas e sendo consumidores de mercadorias produzidas sob o controle de transnacionais. Vargas Llosa concebe uma história determinista e teleológica que no levará a um futuro promissor no 1º Mundo. Há, também, no quadro construído pelo escritor peruano uma sutil questão epistêmica. Inicialmente, separa Natureza (as coisas-em-si) da Sociedade (homens-entre-si). Posteriormente, retira dos homens-entre-si a política e a economia e as naturaliza, deixando para os homens-entre-si apenas fantasias e utopias, que as próprias sociedades não devem mais permitir que se misturem. Faz, de acordo com o modelo epistêmico moderno, um trabalho permanente de purificação da sociedade em detrimento da grande maioria de homens e mulheres reais desta mesma sociedade. Entretanto, em uma clara contradição, Vargas Llosa diz no mesmo artigo: “Rejeitar a realidade […] negar a existência vivida em nome de outra, inventada […] talvez [seja] o motor principal do progresso e da civilização.” (sic)

Por que, então, não pensamos a partir de outro modelo epistêmico que dê conta das questões latino-americanas? A razão instrumental moderna comete genocídios e depois esquece que os cometeu. O processo de exploração da América Latina é um elemento constitutivo da modernidade. Propor a venda da nossa soberania para o mercado internacional é não fazer uma reflexão objetiva sobre os instrumentos ideológicos, culturais, científicos, políticos, econômicos e, em particular, cognitivos de dominação, que o processo de globalização atual acirra, no qual o processo neoliberal nos submete a um enquadramento colonial. 

Dentro desse outro campo epistêmico proposto, devemos romper com as falsas equações: desenvolvimento como etapa seguinte do subdesenvolvimento, e descolonização como etapa seguinte da colonização. Devemos buscar uma decolonização, a partir da qual faremos um trabalho de decodificação do processo colonização/descolonização, decifrando códigos sociais (no sentido lato), que nos mantêm atados às soluções do modelo epistêmico dos colonizadores, que nos faz acreditar que somos incapazes e que as verdades são transcendentais.

As Américas conquistadas por portugueses e espanhóis, pondo de lado particulares, têm trajetórias semelhantes. Foram quatro séculos de uma estrutura monocultora-agrária-extrativa-exportadora-escravocrata, e apesar das elites locais, na 1ª metade do século XIX, terem conquistado a independência política, mantêm, até hoje, uma estrutura de poder sob uma narrativa civilizatória, que trouxe humilhação, tortura, terror e morte.

O “discurso sobre o método para bem conduzir a [autoridade da] razão na busca da verdade dentro da ciência”, na modernidade, contribuiu para fazer das colônias laboratórios e estabeleceu regras para a manutenção de uma razão instrumental, através da qual, os fins – dos colonizadores – justificam os meios. Entretanto, a civilização anunciada provocou/provoca incivilidade generalizada imbricada de colonizados, colonizadores, elites locais e natureza global, cujos elementos, transformados em mercadorias, tornam a vida, com as características atuais, inviável.

Com o intuito de materializar a narrativa de horrores na América Latina a partir da divisão internacional do trabalho e das elites locais, darei três rápidos exemplos atuais. Roberta Traspadini, da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), segundo o documento da CEPAL, “Panorama Econômico-Social de 2014”, apresenta-nos os seguintes números para a América Latina: somos “165 milhões de pessoas em situação de pobreza, […] 66 milhões de pobres, […] 70 milhões de crianças e adolescentes na pobreza e 30 milhões extremamente pobres.” No Estado de São Paulo, maior concentração urbano-industrial brasileira, assistimos a uma tragédia anunciada da escassez de água, devido ao modelo irracional industrial e de consumo, ao desmatamento, à poluição, escassez de chuvas, assoreamento dos rios provocado por toda espécie dejetos industriais e domicílios precarizados, mercantilização dos espaços das cidades etc. Terceiro exemplo, a Thyssenkrupp–Companhia Siderúrgica do Atlântico–TKCSA (do grupo alemão Thyseenkrupp AG) localizada em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro-RJ-Brasil, vem causando, segundo um relatório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sérios danos ambientais e de saúde aos moradores do bairro ao provocar uma chuva de prata composta por silício, enxofre, manganês etc. (escória resultante do processo de purificação do ferro gusa para a produção do aço), e, ainda segundo o relatório, a concentração de ferro no ar aumentou 1.000% e a emissão de substâncias poluentes ultrapassa em 3 ou 4 vezes o estipulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Portanto, em nome do lucro exorbitante das transnacionais e de seus acionistas e de interesses de uma burguesia interna dependente, emprega-se o “mantra” da razão (barbárie) instrumental modernista (os meios justificam os fins).

Já aprendemos que a modernidade busca apagar trajetórias, sempre trágicas para as camadas pobres. Busca purificar fatos e artefatos até consolidá-los como verdades absolutas e universais idealizadas e assumidas por grande parte dos grupos sociais, provocando um processo de retroalimentação de uma tragédia mais do que anunciada. Devemos, portanto, todos os povos submetidos a esta lógica epistêmica predominante, construir uma revolução epistêmica.

Mais uma vez, utilizo palavras de Roberta Traspadini para pensar a nossa tragédia: […] “as ciências sociais não dão conta de esconder o real concreto contraditório. Não é só pela nossa capacidade de intervir, é pela incapacidade de explicar.” Se me permitem caro leitor e Roberta, aqui, tentarei explicar o impasse que se coloca nestas afirmações. As ditas ciências da modernidade, em nome de verdades absolutas e universais (leia-se eurocêntricas), jamais conseguiram dar conta dos diferentes (tudo que não está enquadrado na construção da ordem epistêmica moderna). As contradições das realidades emergem permanentemente, logo, nós, latino-americanos, não podemos, ad infinitum, buscar soluções construídas lá fora para os nossos problemas; fujamos também desta equação: problemas nossos, explicações e soluções deles. 

Sendo assim, proponho um esboço de um enquadramento epistêmico para nuestra América. Para tanto, utilizo os conceitos de heterogeneidade dos estudos de ciência-tecnologia-sociedade (John Law) e de verdade do pragmatismo (William James); e farei uma primeira aproximação com a atitude des-colonial (Nelson Maldonado-Torres). Acrescento a estes conceitos um olhar historicista por entender que as construções históricas são incomensuráveis, como também o simples olhar estruturalista não é suficiente para abarcar as dinâmicas cotidianas das mulheres e dos homens reais. Devemos, portanto, vasculhar as consolidações materializadas que mantêm ocultas as contradições sociais e não estudar as sociedades a partir de estruturas dadas, uma vez que estas somente chegam após a ocultação das controvérsias. Não seria demais reafirmar que a vida nas sociedades se faz através das lutas de classes e que devemos observar as suas práticas materializadas. 

De acordo com Law, conhecimentos são construções sociais de amplas redes de materialidades (fatos e artefatos) heterogêneas em permanentes arranjos e permutações caóticas, provocando consequentes processos normativos (precários, provisórios, contingenciais e locais) a partir de lugares de fala. E todas as nossas ações são intermediadas por materialidades (seja por um parafuso seja por uma usina nuclear) ou por narrativas que se materializam (por exemplo, costumes de uma comunidade consolidados a partir de uma visão criacionista da humanidade). Assim sendo, não são mentes brilhantes em seus laboratórios hermeticamente fechados ao tumulto que acontece lá fora, que (des)cobrem A Realidade dada. 

Maldonado-Torres afirma que se faz necessário um urgente giro des-colonial para sairmos da lógica epistêmica da modernidade que tem a colonização a partir do século XV na dita América Latina como um elemento constitutivo. Maldonado-Torres propõe uma atitude des-colonial que surgiria não propriamente da atitude filosófica do espanto, mas diante de realidades que deixariam de ser naturais em instantes de horror e de morte.

Por fim, James. Diferente do conceito de verdade da modernidade cujas determinações antecedem consequências, condicionando estas, James propõe que verdades se consolidam como tais a partir de consequências condizentes com as ações praticadas, sendo as verdades sempre subjugadas a um sistema de validação.

Sobre o giro des-colonial, penso que deveríamos utilizar a expressão decolonial em detrimento da expressão descolonial (ou des-colonial). Explico. O prefixo latino de, como sabemos, significa movimento de cima para baixo, separação, negação (exemplos: decair, decapitar, depor). O prefixo des, também latino, significa negação, ação contrária, separação (exemplos: desventura, desfazer, desmembrar). Em ambos os casos os significados se confundem, entretanto, o de, para a nossa questão é muito mais contundente (“movimento de cima para baixo”), ou se quisermos utilizar expressões mais populares (“do começo ao fim”; “de fio a pavio”; “não deixar pedra sobre pedra”), ou seja, romper com o quadro epistêmico eurocêntrico da modernidade, não o negando apenas, mas decodificando-o, abrindo a sua caixa-preta.

Para puxar este “fio de Ariadne” da modernidade/colonização, podemos iniciar por qualquer de seus elementos heterogêneos constitutivos em permanentes ações recíprocas (uma nau, uma carta régia, uma concepção religiosa, ferramentas de extração de metais e de tortura, leis e concepções da natureza, um ornamento de mulher, armas e rituais de guerra, um corte de barba ou cabelo, um organograma de um latifúndio, um vocabulário ou um dito, um olhar para o Outro, memórias, rituais, políticas econômicas etc.). Desta forma rompamos com a relação causa-consequência e a ideia de centralidade, rompamos com hierarquias e construamos outro enquadramento epistêmico a partir de consequências favoráveis a nós, latino-americanos e, em particular, tendo as classes trabalhadoras o controle dos meios de produção e da distribuição das riquezas produzidas por estas mesmas classes. 

As sociedades latino-americanas, apesar das suas particularidades, têm histórias semelhantes. De uma industrialização recente, com um desenvolvimento desigual e combinado (conceito trotskista), no qual convivem aspectos avançados e atrasados (com altos padrões de consumo convivendo com a pobreza e a extrema pobreza e suas consequências) e uma burguesia conservadora que se alia aos setores tradicionais, a única saída para a classe trabalhadora é a construção de um projeto de soberania nacional e socialista, tendo como constituinte deste projeto um outro enquadramento epistêmico. 

* Paulo Sérgio Pinto Mendes é Doutor em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGHCTE/UFRJ

Referências bibliográficas:

JAMES, William. “Concepção da verdade no pragmatismo” in Pragmatismo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p.111-129.
LAW, JOHN. “Notes on the Theory of the Actor-Network: Ordering, Strategy and Heterogeneity”. Disponível em: <file:///F:/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 10 ago 2015.
LLOSA, Mario Vargas. “Movimentos tentam ‘revogar’ a lei da gravidade” in O Estado de São Paulo, 04.02.2001, p. A18. Disponível em: <file:///E:/mario%20vargas%20lhosa%20-%20movimentos%20tentam%20revogar%20a%20lei%20da%20gravidade.pdf>. Acesso em: 25 jul 2015.
MALDONADO-TORRES, Nelson. “La descolonización y el giro des-colonial” in Tabula Rasa. Bogotá-Colômbia, nº 9: 61-72, julio-diciembro 2008. Disponível em: <file:///F:/decolonialidade%20-%20nelson%20maldonado%20torres%20-%20n9a05.pdf>. Acesso em: 12 ago 2015.
TRASPADINI, Roberta. Ciências sociais e teoria da dependência. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tI0KE6z1JnA>. Acesso em: 10 ago 2015.

Foto: Reprodução/IELA

Fonte: IELA

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