Por que discordo de André Singer

Por Luis Felipe Miguel.

Na Folha de hoje, André Singer faz uma análise da situação política brasileira e afirma que o futuro da nossa democracia depende de Lula ser candidato às eleições presidenciais do ano que vem.

Ele começa analisando a decisão do TSE, de adiar o julgamento da chapa Dilma-Temer, “entendendo ser difícil derrubar um presidente da República a partir de plenário dedicado a fiscalizar procedimentos eleitorais”. Singer parece avaliar que esta “opção política”, como ele mesmo diz, é uma opção pela estabilidade, preferindo deixar em segundo plano as questões essenciais: qual o sentido de optar pela estabilidade da ilegitimidade? Esta prudência teria sido adotada caso Dilma ainda estivesse no poder?

Em seguida, Singer caracteriza o momento em que vivemos, “uma situação que oscila entre a plenitude democrática e surtos de exceção ocasionais, porém frequentes”. Mais adiante, explica que “apesar da arbitrariedade do impeachment sem crime de responsabilidade, até aqui os direitos fundamentais não foram suspensos e o último pleito municipal ocorreu em clima de liberdade. Episódios suspeitos, como a invasão a tiros de uma escola do MST, se multiplicam, mas ainda sem caracterizar uma política repressiva do Estado, típica de regimes fechados”.

Creio que essa caracterização do regime político atual está profundamento equivocada. Longe de uma plenitude democrática pontuada por surtos de exceção ocasionais, temos um avanço da exceção que já desconfigura a própria democracia formal. Seus primeiros passos, cabe lembrar, foram dados ainda no período Dilma Rousseff, com a lei “antiterrorismo” que o governo patrocinou, abrindo caminho para a criminalização dos movimentos sociais, e a repressão crescente aos protestos de rua. Já se manifestava então a reação dos grupos privilegiados ao risco de uma maior ativação dos movimentos populares, que está na raiz da desdemocratização em curso.

Em seguida, o aparelho repressivo do Estado passou a atuar nas fronteiras da legalidade – e em muitos casos além delas – para derrubar o próprio governo. É curioso que Singer não cite o lawfare contra o ex-presidente Lula ou as arbitrariedades da Lava Jato, colocada acima da lei por decisão do TRF da 4ª região, como exemplos dos “surtos de exceção” de que ele fala. Mas, se o fizesse, teria que retirar o “ocasionais” com que qualifica os surtos.

Não vou enumerar todos os casos de violência policial contra manifestantes, de perseguição a movimentos populares, de intimidação a professores, de censura ou tentativa de censura a vozes discordantes, que são mais do que episódios ocasionais e mostram, com clareza, em que direção o Estado brasileiro está se movendo. Fico só com um elemento. Para sua implantação, a agenda do governo ilegítimo, de acelerado retrocesso nos direitos e acelerada desnacionalização da economia, depende da redução da capacidade popular de influenciar nas decisões. Se isso não nos afasta da “plenitude democrática”, o que nos afastaria?

Singer culmina seu veredito sobre a situação observando que “enquanto não houver eleições presidenciais livres e justas, permanecerá uma zona cinzenta, na qual tudo pode acontecer”. O que o leva à conclusão: “Não importa, portanto, que Lula ganhe, e sim que consiga concorrer em igualdade de condições. Estaria, assim, garantida a chance de alternância de poder, elemento indispensável do processo democrático”.

Há aqui um formalismo, uma redução final da democracia ao processo eleitoral, que nos desarma de qualquer possibilidade de apreciação crítica da realidade. Indico apenas dois pontos. (1) Qual a chance de eleições “livres e justas” ocorrerem, nas circunstâncias do cerco judicial e midiático contra Lula, o PT e a esquerda em geral, tal como ocorre hoje? (2) De que adianta ter eleições, mesmo que “livres e justas”, se o impedimento ilegal da presidente Dilma Rousseff ensinou às elites políticas que os governos eleitos são tutelados e os limites para sua ação estão ainda mais estreitos do que já eram?

Singer é um dos melhores analistas da nossa política e seus estudos sobre o lulismo são incontornáveis para qualquer um que queira entender o Brasil do século XXI, algo que é reconhecido até por quem discorda deles. Mas ele resiste a entender o sentido da ruptura de 2016. De uma tacada só, os dois pilares da ordem liberal-democrática foram jogados por terra: a ideia de que o acesso ao poder depende do voto e a ideia de que a lei vale igualmente para todos.

Não se trata de um desvio pontual. Não se trata de recolocar o trem nos trilhos com uma nova eleição presidencial. O golpe revelou o dilema profundo da nossa experiência democrática, que era a convivência com uma classe dominante profundamente refratária a qualquer diminuição da desigualdade. Mostrou que, para reconstruir a democracia no Brasil, esta questão finalmente vai ter que ser enfrentada. Por isso não é correto falar que o Brasil “oscila entre a plenitude democrática e surtos de exceção ocasionais”. Não é uma oscilação, é um desnudamento progressivo dos graves limites do ordenamento democrático que tínhamos. Não estamos ainda numa ditadura, mas todos os passos que foram dados nos últimos meses foram em sua direção.

Por isso, também, a questão não é saber se A ou B concorrerão ou mesmo chegarão à presidência da República. A questão é saber se o mandato popular terá poder – por exemplo, para desfazer os retrocessos do golpe.

Singer termina seu artigo com um paralelo histórico que me parece particularmente infeliz: “Lula encontra-se, como Juscelino Kubitschek após o golpe de 1964, à espera de que o calendário eleitoral se cumpra e ele possa concorrer para promover a conciliação. Naquela ocasião, os militares, por verem JK como a volta do populismo, cancelaram a eleição presidencial direta por um quarto de século. Que 1965 não se repita”.

Eu me pergunto: que tipo de democracia nós teríamos no Brasil se as eleições de 1965 tivessem sido mantidas? Um regime em que determinadas políticas (as “reformas de base” de Jango) estavam vetadas por decisão superior, em que a soberania popular não se sustentava nem como ficção, em que os eventuais governantes sabiam que, se não rezassem pela cartilha certa, seriam destituídos manu militari. Em que, em suma, só restava aceitar a imposição da força e “promover a conciliação”. Singer está preocupado com o risco de que 1965 se repita, mas, infelizmente, se mostra demasiado conformado com o 1964 que já se repetiu.

Imagem: Captura de tela.

Fonte: Luis Felipe Miguel

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