Por que a proposta de municipalizar a saúde indígena é um erro

Indígenas participam da Conferência Nacional Indígena onde debateram o aperfeiçoamento do subsistema. Crédito da foto: Arquivo/Cimi

O governo federal, com as ideias do ruralista e ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, anunciou aos povos indígenas, organizações indigenistas e ao Conselho Nacional de Saúde – órgão de controle social do Sistema Único de Saúde (SUS) – que estuda a possibilidade de municipalizar a política de atenção à saúde indígena, a começar pelas regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Nas demais regiões, defende a estadualização do atendimento.

Para o ministro Mandetta, as mudanças vão melhorar e qualificar a prestação do serviços de saúde às populações indígenas, na cidade e nas aldeias, atualmente realizada por organizações da sociedade civil através de convênios com o Ministério da Saúde, intermediados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Cumpre-se uma espécie de protocolo: no início de cada novo governo são discutidas mudanças relativas aos povos indígenas, em especial às políticas públicas dedicadas à atenção em saúde.

Ao longo dos últimos 30 anos, a política de assistência passou por equipes volantes ligadas à Fundação Nacional do Índio (Funai), depois se estruturou um departamento dentro do órgão indigenista e, durante o governo de Fernando Collor, se descentralizou a assistência aos povos indígenas. As políticas de atenção em saúde passaram então a ser de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), organismo do Ministério da Saúde que em 2010 viu a gestão da saúde indígena ser entregue à Sesai. No governo de Fernando Henrique Cardoso se estruturou o modelo específico de atenção, cuja gestão se dava por meio de distritos, quando foram criados 34 DSEI’s (Distrito Sanitário Especial Indígena). Neste contexto, se inicia a política de terceirização da assistência.

Mais adiante, nos governos Lula e Dilma, manteve-se a terceirização, mas o modelo foi redefinido, diminuindo a quantidade de terceirizadas prestadoras de serviços, chegando-se à criação da Sesai. Entre 2014 e 2015, durante o governo Dilma, formulou-se um Projeto de Lei (PL) para estabelecer uma política de privatização da assistência através da criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI). A pressão do movimento indígena fez com que o PL não fosse adiante. Durante todos estes anos, passando pelos cinco governos oriundos da Constituição de 1988, a municipalização, de uma forma ou de outra, sempre esteve em pauta.

No âmbito das mudanças no modelo de prestação de serviços, a política de municipalização foi considerada em diversas ocasiões pelo fato do SUS ter como uma de suas lógicas de funcionamento a descentralização da assistência nos municípios, mas sempre foi combatida pelos povos indígenas e suas organizações, que se articulavam para evitar a sua concretização. O principal argumento dos povos indígenas é de que precisam de uma atenção específica e diferenciada, conforme prevê o texto constitucional.

É sempre bom lembrar que a Constituição Federal assegura aos povos indígenas o direito de viverem de acordo com suas culturas, costumes, crenças, suas cosmovisões e suas organizações sociais. A legislação existente atribui à União a responsabilidade pela execução das políticas a serem desenvolvidas junto aos povos e comunidades respeitando tais diferenças e especificidades.

Também foi a Constituição de 1988 que criou o SUS, regulamentado pela Lei 8.080/90, onde se estabelece a vinculação da assistência em saúde ao Ministério da Saúde (MS). As propostas e princípios do SUS, em interface com a questão indígena e seu subsistema de saúde, estão embasados em quatro marcos referenciais: reciprocidade, eficácia simbólica, integralidade e autonomia – estabelecidos pela II Conferência Nacional de Saúde Indígena, realizada em 1993, em Brasília. Pensados para o contexto de vida dos povos indígenas, estes quatro marcos referenciais são funcionais e servem como base para a criação de uma política diferenciada, que atenda às especificidades e aos anseios dos mais de 305 povos indígenas que vivem no Brasil.

No ano de 1999, com a edição do Decreto nº 3.156/99 e a aprovação da “Lei Arouca” (n° 9.836 de 23 de setembro de 1999), a política de saúde passou ao encargo do Ministério da Saúde. Esta lei afirma que: “o Ministério da Saúde estabelecerá as políticas e diretrizes para a promoção, prevenção e recuperação da saúde do índio”, cujas ações seriam na época executadas pela Funasa. O texto legal determinou também que o governo federal instituísse o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, tendo por base os 34 DSEIs.

Para assegurar uma política diferenciada de atenção à saúde dos povos indígenas, precisam ser respeitadas as formas tradicionais de prevenção de doenças e manutenção da saúde, assim como os distintos conceitos de saúde e doença, do adoecimento, da cura, da garantia de condições de vida. Mas também é preciso investir na formação de profissionais de saúde indígena, sendo a capacitação e o acompanhamento destes respaldada, por um lado, na valorização dos conhecimentos históricos da medicina indígena e, por outro lado, no domínio de novos conhecimentos para que esses agentes realizem as ações concretas de prevenção, de informação ou de atendimento às comunidades em que atuam.

No final do ano de 2008 foi apresentado o Projeto de Lei 3.958/2008, visando alterar a Lei 10.683/2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios e cria a Secretaria de Atenção Primária e Promoção da Saúde, na qual a saúde indígena estaria submetida. Na exposição de motivos deste projeto, o ministro da Saúde no período, José Gomes Temporão, propôs a transferência das competências e atribuições exercidas pela Funasa para a Secretaria Especial de Saúde Indígena ainda não oficializada. Fruto das pressões dos povos indígenas, constitui-se um Grupo de Trabalho (GT) com a participação de lideranças indígenas (Portarias 3034/2008 e 3035/2008 GAB/MS) cujo objetivo era discutir e apresentar propostas, ações e medidas a serem implantadas no âmbito do Ministério da Saúde, no que se refere à gestão dos serviços oferecidos aos povos indígenas. Depois de dois anos de espera, o governo editou a Medida Provisória 483, aprovada pelo Congresso Nacional e transformada na Lei 12.314/2010, que possibilitou a criação da Sesai, em 19 de outubro de 2010, com o Decreto 7.336.

O novo modelo de gestão da saúde indígena deveria ser de caráter executivo, ligada diretamente ao Ministério da Saúde e vinculada aos DSEIs. Deveria assegurar a autonomia administrativa e financeira dos distritos, como unidades gestoras do SUS, contando com orçamentos próprios e administrados através dos Fundos Distritais de Saúde. Também deveria criar plano de carreira específica para profissionais de saúde indígena com condições trabalhistas adequadas às complexas e diferentes realidades dos DSEIs. Não só isso: assegurar que os chefes ou coordenadores dos distritos fossem aprovados pelos conselhos distritais, garantir que o controle social fosse efetivo, com participação indígena legítima em todas as instâncias de decisão. O objetivo, afinal, era formar um quadro estável de recursos humanos (servidores públicos) adequado às necessidades estratégicas da gestão.

Em linhas gerais e conceituais, a política de atenção à saúde indígena ficou bem delineada. No entanto, o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena – tal como fora pensado e deliberado pelas Conferências Nacionais de Saúde dos Povos Indígenas (1986, 1993, 2000, 2006, 2014) não encontrou adesão no âmbito dos governos. As gestões mantiveram, nos últimos anos, uma política paliativa e pautada na prestação de serviços de modo terceirizado, através de convênios com organizações da sociedade civil. Apesar disso, ocorreram avanços significativos em termos de participação dos indígenas nas instâncias de controle social e de definição e execução das políticas.

Neste momento, passados quase 20 anos da publicação da lei Arouca, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, os povos indígenas seguem na incerteza e insegurança quanto ao modo como se assegurará a atenção à saúde no governo Bolsonaro. Mesmo depois de terem sido realizadas cinco Conferências de Saúde Indígena, e nelas terem sido estabelecidas diretrizes e propostas para as políticas, pouco se avançou no sentido de consolidação de um modelo de atenção à saúde: diferenciado e participativo. Segue-se por um caminho sem direção determinada, e o mais grave, desconsiderando as discussões já realizadas em etapas locais e distritais da 6ª Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas, que ocorreram em 2018, nas quais se priorizou a discussão e elaboração de propostas tendo em vista o fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde.

Um dos pilares da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena será a defesa da saúde como direito de todos, que só poderá ser garantida pela manutenção e fortalecimento do SUS. Entre os objetivos da conferência está a atualização da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, publicada em 2002, e a redefinição das diretrizes, no sentido de efetivamente levar em conta as particularidades étnicas e culturais no modelo de atenção à saúde dos povos indígenas. A conferência tem como tema central: “Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas: atenção diferenciada, vida e saúde nas comunidades indígenas”.

Lamentavelmente, em meio à realização da 6ª Conferência, cuja etapa nacional se dará em maio de 2019, o governo federal anuncia mudanças nos rumos da política, propondo a municipalização e a estadualização da atenção à saúde aos povos indígenas, sem levar em conta as deliberações das conferências anteriores e, muito menos, as propostas que foram debatidas e aprovadas nas conferências distritais.

É importante destacar porque a municipalização e a estadualização não são alternativas viáveis para a política de saúde voltada aos povos indígenas. Listamos abaixo alguns argumentos que demonstram porque tais alternativas têm potencial de desastre:

1- As disposições constitucionais determinam que compete à União legislar sobre povos indígenas e, assim, cabe a ela estruturar um órgão de assistência que seja gestor e executor da política de atenção à saúde indígena;

2- A Lei Arouca – n° 9.836 de 23 de setembro de 1999 – criou o Subsistema  de Atenção à Saúde que tem por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, tornando-os, em essência, a referência fundamental para o modelo de assistência. Vinculados ao SUS, a diferença é de que a descentralização não se vincula aos municípios e sim a desenhos diferenciados, visando atender às especificidades étnicas, culturais, geográficas e territoriais dos povos indígenas;

3- As Conferências Nacionais de Saúde dos Povos Indígenas deliberaram, ao longo das últimas décadas, que a política de atenção à saúde deve ser estruturada através do Subsistema, gestado pela União, e que nele deve haver participação das representatividades dos povos indígenas e de suas organizações no controle social, na elaboração das políticas, no planejamento e execução orçamentários e nas ações da gestão;

4- Os povos indígenas vêm se posicionando recorrentemente contra a municipalização da assistência por razões políticas, econômicas, culturais e estruturais, tais como: as mudanças nas administrações municipais, que ocorrem a cada quatro anos, a falta de qualificação dos quadros municipais para uma atenção específica, considerando as diferenças étnicas e culturais, as carências relativas às estruturas físicas e financeiras para atendimento das demandas das comunidades e, ainda, a falta de profissionais em saúde capacitados e disponíveis para esse tipo de serviço;

5- As administrações públicas municipais, em geral, possuem vínculos estreitos com setores da política e da economia locais que, ao longo da história, fazem oposição aos direitos indígenas, especialmente aqueles relativos às demarcações de terras, e essa influência externa geralmente consolida relações de conflito e de intolerância contra lideranças, comunidades e povos indígenas;

6- O preconceito, o racismo e a intolerância – alimentados por aqueles que discordam dos direitos indígenas e não os aceitam em suas diferenças étnicas e culturais – contaminam as administrações públicas locais (municipais e até estaduais) e as tornam inviáveis como gestoras, administradoras e executoras das políticas para os povos indígenas.

Diante disso, pede-se que o governo federal, por intermédio do Ministério da Saúde, reveja sua posição. Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal (MPF) precisa se posicionar contra as perspectivas de municipalização e estadualização da política de atenção à saúde indígena. Desse modo, serão resguardados os direitos já consolidados e serão atendidos anseios, propostas e diretrizes estabelecidos nas Conferências Nacionais de Saúde, tanto do SUS quanto dos povos indígenas.

Para a garantia da vida e de um adequado atendimento, é necessário investir no aperfeiçoamento do modelo atual, que tem por base o subsistema específico e diferenciado, assim como na consolidação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI).

Brasília, DF, 22 de fevereiro de 2019

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

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