Por que a PM é tão avessa aos direitos humanos?

Por Almir Felitte.

Na última terça-feira (27), o centro de São Paulo foi testemunha de mais um assassinato pelas mãos da Polícia Militar. Em ação na Favela do Moinho, Leandro de Souza Santos, 18 anos, acabou sendo morto por policiais da ROTA. Segundo a Ouvidoria da PM, há denúncias de que, antes de morto, ele teria sido torturado com o uso de um martelo. O caso se soma às mais de 3 mil mortes anuais decorrentes de ações policiais no país.

Muito embora os comandos centrais das polícias militares insistam, em casos semelhantes, em dizer que tratam-se apenas de fatos isolados envolvendo “laranjas podres” dentro da instituição, não é preciso nenhuma análise mais aprofundada para perceber que a violência policial é, na verdade, um problema sistêmico. Afinal, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, só entre os anos de 2014 e 2015 foram cerca de 6.500 pessoas mortas pela polícia, número puxado, em grande parte, pela PM, ainda que as estatísticas sejam subestimadas por falta de maior transparência das informações.

Tal quadro mostra uma clara aversão institucional aos direitos humanos, diretamente relacionada com o militarismo adotado pelas polícias ostensivas estaduais. Para entender esse comportamento, porém, é preciso fazer uma análise mais detalhada da maneira que se dá a formação dos membros do alto escalão da PM e da instituição.

A própria grade curricular das Academias de Oficiais da PM, aliás, já mostra indícios das raízes da violência policial que se concretiza nas ruas. No Barro Branco, por exemplo, responsável pela formação de oficiais em São Paulo, somente em 1994 surgiu a matéria de Direito Internacional Humanitário (posteriormente, Direitos Humanos), pouco evoluindo até o ano de 2013, quando ocupava somente 1,47% da grade.

Ainda assim a Academia paulista estava à frente das demais, tais como Santa Catarina (1,07%) e Paraná (0,68%). Reduzida, a matéria deixa de abordar temas importantes como o Pacto de San José da Costa Rica, além de outros tratados e convenções internacionais relacionados aos direitos das minorias e à prevenção da tortura[1].

Some-se ao precário ensino em Direitos Humanos, ainda, a hierarquia extremamente rígida e o isolamento em que se dá a formação militar, em internatos, e o resultado é uma instituição cujo ambiente é extremamente propício ao preconceito. Isso porque tal isolamento é responsável pela ruptura do militar em formação com seus antigos valores, de forma a facilitar o aprendizado de novos princípios e padrões de condutas puramente militares, muitas vezes conflitantes com os da sociedade civil[2].

Por outro lado, nesse ambiente isolado que supervaloriza condutas como a estrita disciplina e a obediência em detrimento de valores civis como o diálogo e o senso crítico, forma-se uma estrutura hierárquica rígida e altamente verticalizada. A hierarquia e a ação vinculada ao comando externo diminuem a capacidade e a possibilidade dos militares de refletir sobre si mesmo e sobre os outros nas relações sociais, tornando a instituição um ambiente fértil para o desenvolvimento de preconceitos[3].

Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM de São Paulo, analisa, em sua obra, como esse ambiente reflete nas ações policiais cotidianas. Para ele, a estrutura vertical e vinculada a um comando externo da PM leva ao estabelecimento de soluções padrão e mecanismos de rotulamento que servem de base para a conduta do policial em seu trabalho.

É uma prática comum na polícia, que frequentemente rotula pessoas como suspeitas baseada em conceitos de classe social, região que habita ou cor da pele. Esse mecanismo de criação de estereótipos evita o questionamento das condições sociais que envolvem um crime e colocam o preconceito institucional como justificativa para a prática de atos violentos e ilegais por parte da polícia.

Uma pesquisa que retrata bem como essa conduta repercute na sociedade foi feita pelo GEVAC da UFSCar há alguns anos. Através da análise de documentos oficiais da Ouvidoria da Polícia de São Paulo, que traziam informações sobre 734 casos e 939 vítimas da letalidade policial, no Estado, entre os anos de 2009 e 2011, os pesquisadores chegaram à conclusão que pessoas negras tinham três vezes mais chances de serem mortas pela PM paulista do que as brancas.

Mas, junto ao ambiente propício ao preconceito que se forma nas instituições militares, há ainda a ideia de que o policial deve passar por uma espécie de prova de fogo, com um ensino severo e, por vezes, até mesmo violento. Theodor Adorno já ensinava que a educação que tem como objetivo criar pessoas “duras” significa apenas uma indiferença com a dor em geral, seja a sentida pelos outros ou mesmo a própria. Para ele:

“Quem é severo consigo mesmo, adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir”. Por isso, é preciso criar uma “educação que não premie a dor e a capacidade de suportá-la”[4].

Mas tal ensino rígido não é imposto à toa. Há um grande interesse das elites em criar um sentimento geral de aversão aos Direitos Humanos que justifique uma política pública que dá salvo-conduto para policiais matarem. É o que o professor Alvino Augusto de Sá[5] chama de Doutrina de Segurança Social, que transformou, não só o delinquente comum, mas toda a população periférica em um inimigo em potencial do Estado.

Assim, a aversão da Polícia Militar aos Direitos Humanos, na verdade, se trata de uma política pública de controle social. O sistema militarizado não só fracassou na redução da criminalidade como serviu para legitimar uma série de ilegalidades do Estado contra sua própria população. Por isso, é necessário uma grande reforma institucional das polícias brasileiras pautada na desmilitarização e na construção de departamentos de policiamento comunitário.

Fonte: Controvérsia.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.