Por que a Comcap teve que indenizar um trabalhador haitiano?

Rosangela Bion de Assis e Raul Fitipaldi entrevistaram o advogado e assessor Jurídico do Sintrasem, André Moura Ferro (AMF).

O que aconteceu com o trabalhador haitiano que foi selecionado no concurso da Comcap (Companhia Melhoramentos da Capital), mas foi não foi admitido por ser extrangeiro?

AMF – Esse trabalhador possuía visto de permanência e autorização para o trabalho, possuía carteira de trabalho, estava vivendo e trabalhando em Florianópolis. Ele foi selecionado para uma vaga na Comcap para trabalhar 89 dias durante a temporada mas, no momento da admissão, a empresa se deu conta que ele não era brasileiro. Mesmo depois de aprovado ele foi eliminado.

Essa decisão foi baseada em algum regimento federal ou Lei?

AMF – Estava no edital que não tem força de lei: não cria direitos, logo não pode tirar direitos, é um mero documento administrativo. Houve uma subversão das normas internacionais de direitos humanos e de respeito ao estrangeiro que garantem a igualdade.

Não precisava a condição de refugiado para ele poder trabalhar no Brasil? O fato de não ter infringido nenhuma lei, de ter sido aprovado num concurso indica que ele foi rejeitado por uma ideia subjetiva da empresa?

AMF – O único impedimento do estrangeiro residente é a inscrição eleitoral: ele não pode ser eleito para um cargo público, nem eleger, algo que deveria mudar. Nem assumir cargos que estão na linha presidencial, que são exclusividade de brasileiros natos. Não havia nenhum impedimento para ele assumir um cargo operacional, ao contrário, existem normas internacionais que obrigam a igualdade.

Então o que ocorreu foi resultado de despreparo, pressa, elemento xenófobo ou somente um erro burocrático?

AMF – Houve um entendimento atrasado de buscar uma exclusividade nacional, um egoísmo nacional. Aquela frase bem comum em Florianópolis: ‘farinha pouco meu pirão primeiro’. A ideia de que os nacionais podemos excluir os demais dos direitos, que só nós temos direitos.

Esse precedente favorável ao haitiano favorece o reconhecimento dos direitos dos imigrantes?

AMF – Acredito que sim, porque novos editais estão sendo abertos. Houve um recente, em que um argentino se candidatou também a uma vaga e novamente a Comcap o proibiu e novamente nós entramos com uma ação judicial. Ele mora desde os 11 anos de idade no Brasil, ou seja, mais da metade da sua vida foi vivida aqui. Descobriram, no último momento, que ele não era brasileiro, como se fosse um demérito você ter nascido num outro lugar dentro do mapa.

Quando abrir um concurso para efetivos na Comcap vamos outra vez realizar essa discussão. Novamente vamos impugnar o edital para que esses trabalhadores haitianos se sintam incluídos e representados. Estamos falhando enquanto movimentos sociais, sindicatos e organizações de esquerda no reconhecimento dos direitos desses trabalhadores haitianos. Em joinville já existe a Associação do Trabalhador Haitiano que promove além da ajuda social, a representação, em Florianópolis ainda não temos uma Associação.

Como os demais trabalhadores da Comcap acompanharam esse caso?

AMF – A situação foi debatida com a categoria em Conselhos. Numa cidade que chega a discriminar quem não nasce na ilha, fomos mostrar um pensamento diferente, que o trabalhador estrangeiro é somente um trabalhador comum com seus méritos e limitações.

Como foi essa história desde a perspectiva jurídica, perante a Justiça do Trabalho e o Ministério Público?

AMF – No mundo globalizado, no capitalismo, o capital e as mercadorias não encontram fronteiras mas os seres humanos encontram. A livre circulação do capital e das mercadorias é defendida só os seres humanos estão fechados no país onde nasceram.

Ainda se vê o imigrante como mercadoria também. Só é permitida a entrada do imigrante que tem uma formação muito especial e escassa, que é assediado pelo mercado, esse é considerado o bom imigrante, todos os demais são maus imigrantes. Existem tratados internacionais e normas da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e da ONU (Organização das Nações Unidas) que dizem que os trabalhadores imigrantes tem os mesmos direitos.

No caso do trabalhador argentino há o Acordo de Residência do Mercosul que diz que existe o direito de trabalho e igualdade com peso constitucional, são normas materialmente constitucionais.

Como a Justiça decidiu que a Comcap deveria ser multada?

AMF – Como a empresa se negou em contratá-lo, tentamos uma liminar mas o juiz entendeu que não. Como a temporada terminou, a empresa indenizará os salários e benefícios como se ele tivesse trabalhado os 89 dias. Durante o processo, a empresa entrava em contato dizendo “nós vamos recorrer porque nós não queremos estrangeiros trabalhando”.

Como a mídia convencional se comportou nesse caso?

AMF – No julgamento, os desembargadores diziam que esse era um processo histórico no sentido de garantir a isonomia e que eles iam divulgar. No último dia de 2016, antes do recesso da Justiça, eu já mandei a informação pra todos os meios de comunicação, mas quase ninguém se interessou, a maioria só divulgou quando saiu a nota do Tribunal.

Isso reflete ainda aquela visão em que até aquele que se orgulha de ser filho de imigrante destrata ou trata mal os novos imigrantes. Temos casos de discriminação, ataques, atos xenófobos, racistas e trabalhadores haitianos assassinados. Com certeza, um imigrante europeu é recebido de forma diferente de um trabalhador haitiano ou senegalês.

Até porque somos todos imigrantes estamos num estado de carijós e kainganges.

AMF – A pessoa nasce num local sem escolher. Os países não estão em situação de igualdade e alguns países foram onerados pelo imperialismo, pela miséria ou desastres naturais. É normal existir um fluxo das pessoas buscando melhores condições de vida. O refugiado pode estar fugindo da miséria e não somente da guerra. O imigrante econômico não é em nada menos legítimo, foi o que aconteceu com os italianos, russos, portugueses, holandeses e alemães que vieram para o Brasil

Pra finalizar, acabou o limbo jurídico

Alguns juízes possuem o entendimento que havia a necessidade de uma nova lei federal que permitisse o acesso ao emprego público pelos imigrantes, mas depois foi verificado que as normas internacionais já explicitam isso.

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