Por aborto, 500 mil mulheres poderiam ser presas todos os anos no Brasil

Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Por Lilian Milena.

Jornal GGN – A Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2016, revelou que mais de meio milhão de mulheres haviam realizado, no ano anterior, um aborto. “São em média 57 procedimentos por hora, quase um por minuto”, completa a pesquisadora e professora da Universidade de Brasília (Unb), Débora Diniz, em entrevista por email ao GGN.
“Não há dúvidas de que os impactos da criminalização do aborto afetam todas as mulheres que precisam tomar essa decisão, mas vemos também como a criminalização agrava as desigualdades entre as mulheres, isso porque às mais favorecidas têm a possibilidade de recorrer às clínicas seguras, ou irem para outros países onde a prática é legal”, explica à reportagem.

O aborto já é considerado entre pesquisadores e profissionais da saúde um evento comum na trajetória das mulheres brasileiras, como mostrou a Pesquisa Nacional, derrubando muitos preconceitos em torno do tema como sendo um método mais utilizado entre adolescentes e jovens mulheres inconsequentes, ou profissionais do sexo: 81% já tinham filhos, 88% afirmaram ter religião e 64% serem casadas. Além disso, 84% disseram que o evento ocorreu entre os 25 e 39 anos. “São mulheres comuns e isso deveria deixar o assunto mais simples, porque não são práticas de grupos sexuais de risco”, avalia Débora.
Em um estudo que ajudou a realizar em 2011, coletando dados de adolescentes internadas após a curetagem uterina por aborto, em dois hospitais da capital mais pobre do país, Teresina, no Piauí, o marcador social ficou ainda mais claro. Das 131 jovens, entre 10 e 19 anos, que deram entrada nos hospitais, entre junho e novembro daquele ano, foram entrevistadas 30, dentre essas, foram observadas complicações graves em 3 adolescentes em razão de assistência pós-aborto dentro de unidades públicas de saúde.
Um dos casos apresentados é de uma adolescente de 15 anos e em sua primeira gravidez, submetida a três curetagens uterinas sem anestesia, procedente do interior de outro estado, não do Piauí. “Ao questionar sobre o porquê de não ser anestesiada, foi informada de que seu caso não ‘merecia’ tal procedimento. Em estado grave, foi encaminhada para Teresina, onde foi diagnosticada perfuração uterina e infecção”.
O trabalho mostrou, ainda, que a maioria das jovens (80%, 24) não quis revelar aos profissionais do atendimento hospitalar que o aborto havia sido induzido, com “receio de sofrer discriminação, ameaça de denúncia ou exposição perante outras pessoas”. Ainda assim, 40% (12) relataram que se sentiram vítimas de discriminação e que foram ameaçadas. “Uma delas resumiu seu incômodo pela cena de expulsão do feto: A enfermeira me fez olhar para o feto… ela insistiu que eu visse”.
Os relatos comprovam a precaridade do acolhimento para essas mulheres além de prática assistencial inadequada no sistema público de saúde, colocando em risco a vida de muitas.
“A partir do momento que o aborto deixa de ser crime, o Estado reconhece que deve cuidar de todas as mulheres, e na vida das mulheres pobres isso de fato faz muita diferença”, completa Débora.
O crime e o Estado 
Considerando a legislação do Código Penal de hoje e os números apresentados ao longo desta matéria, pelo menos 500 mil mulheres abortam todos os anos e, portanto, deveriam cumprir pena no sistema prisional. O procedimento não é crime no país apenas em casos de risco de saúde da mãe, a anencefalia (má formação cerebral) e gravidez fruto de violência sexual.
Em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) defendeu a autonomia das mulheres de interromper a gestação até a 12ª semana (3º mês), quando o risco de complicações com o procedimento é considerado baixo, além disso, “é também um período muito anterior ao tempo mínimo necessário para que haja viabilidade do feto para a vida fora do útero”, pontua Débora, destacando que a 12ª semana é o marco de aborto legal seguido internacionalmente. Mesmo nos países onde é possível recorrer a interrupção da gravidez após os três meses, cerca de 80% o realizam até essa fase.
Assim, o quadro converge para uma responsabilidade jurídica real do Estado brasileiro sobre o número de mulheres mortas – 4 por dia, segundo dados oficiais – e mutiladas por complicações pós-aborto em condições ilegais, em vista dos dados coletados dentro e fora do Brasil, sobre a redução de danos da descriminalização. É também por omissão que o Estado permite a existência de procedimentos clandestinos, não submetidos à vigilância.
“Sim, acredito que o Estado pode ser responsabilizado [em âmbito civil]. O risco é consequência da criminalização. É pela criminalização que milhares de mulheres arriscam suas vidas e saúde em procedimentos clandestinos e inseguros. Nesse sentido, quando o Estado criminaliza o aborto, ele está ao mesmo tempo expondo todas as mulheres que precisam tomar essa decisão ao risco de morte, danos permanentes à saúde e à prisão”, reflete.
Audiência pública no STF discutirá aborto
Débora, que também é fundadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), foi consultora do PSOL na elaboração da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana gestação, e estará entre os 45 expositores para discutir o tema entre os dias 06 e 06 de agosto, no Supremo Tribunal Federal (STF).
A pesquisadora vem sofrendo ameaças contra sua vida que se tornaram mais intensas desde a convocação do STF. Ela chegou a registrar um boletim de ocorrência na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) e deixou Brasília, onde vive. Nesta semana, o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do governo federal inicio as primeiras medidas de apoio antes de concretizar a inclusão do seu nome na lista oficial de protegidos.
Impacto da legalização em outros países
Se a preocupação de alguns setores é com o aumento de abortos, a partir da legalização, números registrados em países que já avançaram neste sentido apontam para outra direção. Portugal aprovou a interrupção segura da gravidez até as 10 semanas de gestação na rede pública de saúde, em 2007. O governo local estima que na década de 1970 eram realizados cerca de 100 mil procedimentos e o aborto era a terceira causa de mortes das mulheres. Um ano após a nova legislação, os casos registrados caíram para 18 mil e, em 2015, número apresentado foi 10% menor que 2008: 15,8 mil.
Em 2013, Uruguai, país vizinho, passou a permitir o procedimento na rede pública até as 12 semanas de gestação. Até então, as regras eram as mesmas do Brasil. Cerca de um ano depois, o Ministério de Saúde uruguaio divulgou que o número de mulheres que decidiram levar adiante a gravidez após a legalização foi de 30%.
Como esperado para os primeiros anos de vigência da lei, houve aumento de 20% do total de abortos legais. Ainda assim, as interrupções foram realizadas em uma relação de 12 para cada 1.000 mulheres, entre 15 e 45 anos, “porcentagens abaixo dos níveis internacionais”, explicou na ocasião a ginecologista e ex-diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva no MSP, Leticia Rieppi para a Agência Efe.

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