Policiais podem estar por trás de onda de mortes na Bahia, segundo analistas

Há quase duas décadas na Polícia Civil baiana, Kleber Rosa explica que série de homicídios na Bahia segue lógica do Estado de exterminar negros e pobres

Caixas para colocar corpos em Feira de Santana, no final de semana de 16 e 17 de junho | Foto: arquivo pessoal

Uma chacina, três duplos homicídios, duas mortes em supostos confrontos com a polícia, um total de 26 pessoas mortas e medo. O cenário é Salvador, capital da Bahia, os dias são 9 e 10 de junho, logo após o policial militar Gustavo Gonzada da Silva ser morto e ter o corpo mutilado. Na região metropolitana, foram mais 5 assassinatos. No final de semana seguinte, o soldado da PM Wagner Silva Araújo, 28 anos, foi morto em Feira de Santana, também na Bahia, e o mesmo roteiro se repetiu: 19 assassinatos em dois dias.

Ouvido pela Ponte, o investigador da Polícia Civil baiana Kleber Rosa, integrante do movimento Policiais Antifascismo, levanta a possibilidade de que várias dessas mortes tenham sido praticadas por policiais como uma retaliação aos moradores das periferias pelas mortes dos colegas. Para ele, a narrativa não deixa dúvida: os homicídios são uma resposta do Estado, a partir da polícia – para ele, “instituição moldada no racismo” – e baseada na vingança e na demonstração de poder.

“É o Estado dizendo assim: ‘tenho que mostrar que sou mais forte’. É uma disputa ilógica. Um comportamento medonho do Estado de tentar medir forças sem usar a justiça, os meios legais. Não existe legítima defesa aí. O Estado não pode arrogar pra si o direito de matar, sobretudo de uma forma sumária, em nome de uma vingança”, critica.

Todas as execuções seguidas da morte do policial na capital baiana foram praticadas com armas de fogo contra homens jovens e sua maioria em bairros periféricos – apenas 4 na região central da capital baiana, segundo levantamento recebido pela Ponte.

Das mortes na capital baiana, 18 aconteceram ainda em 8 de junho, dia em que a ocorrência da execução do cabo Gonzaga foi registrada. Ele estava bebendo com amigos em um bar entre Santa Cruz e Nordeste de Amaralina, onde vivia, quando foi abordado. Após tentar reagir, foi morto. Os assassinos cortaram partes do corpo do PM. A brutalidade gerou revolta em outros policiais.

Kleber conhecia Gustavo e não soube de qualquer tipo de ameaça que pudesse estar sofrendo. “Eu sou do mesmo bairro, minhas relações estão localizadas lá, ele estudou comigo na mesma escola. Era bem conhecido na região, uma pessoa querida e, antes de ser policial, era morador do bairro, então isso é um elemento problematizador. Tanto é que isso indignou todo mundo, inclusive moradores do bairro que sofrem com a violência policial, porque ele era um morador, foi assassinado próximo da casa dele, num lugar que ele frequentava”, explica.

Um áudio atribuído ao deputado soldado Prisco (PSDB) demonstra a reação da tropa. “A morte do nosso colega Gonzada nos causou muita dor, muita revolta e muita indignação. A resposta tem que ser dada e tem que ser dada à altura. O bandido não pode dominar o nosso estado”, diz a suposta mensagem do parlamentar. “O colega foi assassinado, humilhado, esbagaçado por esses marginais. E essa resposta tem que ser dada à altura. Estou aqui à disposição para ajudar vocês a caçar esses marginais e dar essa resposta”, segue.

Ponte questionou o soldado Prisco sobre se, de fato, é ele quem gravou o áudio propagado pelo WhatsApp, mas o político não respondeu ao e-mail da reportagem.

O investigador Rosa conta que a polícia fez “literalmente um cerco” no Nordeste de Amaralina depois do assassinado do PM Gonzaga. “O bairro foi sitiado. Eu recebi uma série de ligações de pessoas preocupadas, sem saber como agir, sem saber o que fazer com familiares, que podiam ou não ter antecedentes [criminais]. Pessoas, por exemplo, não tinham nem como sair do bairro, porque se fossem parados por uma blitz poderiam acabar em um fim trágico [por terem passagem]. Foi o final de semana mais violento do ano, com certeza”, afirma Rosa.

Medo coletivo

O resultado é uma sensação coletiva de medo nas regiões pobres da capital baiana. Há duas semanas, a Pontebusca familiares de vítimas dos homicídios nestes dois dias. Nenhuma pessoa aceita falar. Até mesmo movimentos e associações que denunciam violência de Estado têm preferido se preservar. Nos registros das ocorrências, há casos de números de telefone incorretos dados pelos parentes de pessoas mortas, outro indicativo do medo.

A reação de uma familiar a um telefonema da reportagem deixa claro o alcance desse temor. “Como você conseguiu o meu contato?”, questiona. “Só falei o que precisava para a polícia e os movimentos, não autorizei mais nada. Não quero falar sobre esta história”, encerra.

Para Kleber Rosa, que tem experiência de quase duas décadas na Polícia Civil, o episódio desnuda uma política de segurança que passa pela dita “guerra às drogas”, mas que, no final das contas, “é um salvo conduto para matar”. “A política de segurança de Estado sempre esteve voltada para controlar, exterminar, combater a população negra, isso tudo com o objetivo de viabilizar a sociedade branca pós-escravista. O modelo que permanece se estendendo até hoje faz com que a estrutura da polícia esteja montada para um determinado tipo de crime, que acontece em determinada região e que coloca, portanto, todo o morador daquela região como inimigo”, avalia.

O problema não é só da Bahia, mas no Brasil como um todo, explica Rosa. “É uma política racista que encarcera em massa, que mata em massa a população e que controla mesmo em condição de liberdade, porque o que acontece nos bairros onde se concentra população negra é o que podemos considerar encarceramento ao ar livre. Ou seja, as pessoas estão vivendo em uma condição de permanente de vigilância e violência mesmo a céu aberto. O que aconteceu há duas semanas? As pessoas ficaram presas, sitiadas, não tiveram coragem de sair de casa, de sair do bairro. O clima ainda é tenso, as pessoas não estão falando”, diz.

A ouvidora da Defensoria Pública da Bahia, Vilma Reis, critica o banho de sangue e a rotina de pavor desde os crimes. “No bairro Nordeste, está todo mundo apavorado. Foram 5 assassinatos lá motivados pela morte desse policial. Não se pode admitir uma sociedade de vingança, é uma barbárie”, conta.

Um pesquisador sobre a violência na Bahia comparou a reação à execução do cabo Gonzaga como “a versão baiana dos crimes de maio” de 2006 em São Paulo, quando houve uma resposta do Estado aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) com uma matança indiscriminada nas periferias. Nos números oficiais, 493 pessoas morreram na reação aos ataques da facção criminosa.

“Cobraram geral pela morte do cabo, a periferia está com muito medo. Nessa onda de mortes, muitos não tinham passagem pela polícia. São fortes indícios de que ocorreu a pratica de extermínio”, explica o profissional, sob a condição de anonimato, temendo represálias.

Os mortos

A chacina registrada no dia 9 do mês passado ocorreu no bairro Ceasa. Já os bairros I.A.P.I., Cosme de Farias e Saboeiro tiveram, cada um deles, um duplo homicídio registrado. O cabo Gustavo foi a primeira vítima do fim de semana, seguido por Mario Souza Santos, Lucas Puig Maia Mesquita, Rafael Lucas Franco Matos, Caique Leonardo Santana de Souza, Flavio Reis dos Santos Júnior, Paulo Ricardo Ramos da Silva, Flávio Lucas Souza Penas dos Santos, Josué da Cruz, Samuel da Cruz Batista, Eliomar da Cunha Rosa, Evandro Silva Santos, Uenderson Gabriel de Oliveira, Diego de Jesus, Genilson de Freitas Santana, Jean Carlos dos Santos, Emerson de Santana Santos, Renivan Barbosa dos Santos, Eduardo de Jesus Santos, Yuri Oliveira da Cruz, Icaro Caio Oliveira Mendes, Alípio Pinheiro de Almeida, Rainer Bispo de Araújo e de outras quatro vítimas não reconhecidas – duas delas vítimas de suposto confronto com a polícia. Todas as vítimas, incluindo o PM, são negras.

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