Polêmica: tapar o sol com peneiras?

Pieter Bruegel
Pieter Bruegel

A esquerda crítica não tem motivo algum para negar a insatisfação popular contra o governo – muito menos, para desqualificá-la…

Por Tadeu Breda.

Em dois meses e meio de segundo mandato, Dilma e PT parecem bastante encrencados. As manifestações de 15 de março são provas cabais de que as tentativas de conciliação nacional fracassaram rotundamente.

O desespero deve estar espesso feito neblina nos corredores do Planalto. Com razão. O governo parece não saber o que fazer diante de ativistas virtuais que se mostraram surpreendentemente reais. São pessoas que não se destacam pela formação política, não dispõem de discursos articulados ou argumentos sólidos, mas que gritam bem alto e mobilizam com inquestionável eficácia.

Claro que estão sendo ajudados material ou simbolicamente pelos partidos da oposição. Alguns desses novos líderes dividem seu tempo entre a militância nas redes e o trabalho no governo paulista, por exemplo. Também se fala em assistência internacional de atores sociais e econômicos norte-americanos. Nada disso deveria surpreender nem alarmar.

Se movimentos de esquerda brasileiros trocam experiências com seus pares latino-americanos, europeus, africanos, por que os ativistas de direita não fariam o mesmo? Recursos estrangeiros para financiar a defesa e intensificação do status quo jorram desde sempre. Basta acenar com a mão para recebê-los. A ligação com partidos tradicionais tampouco deveria escandalizar. Sabe-se (e não se deveria criminalizar, como se costuma fazer à direita) da ligação entre partidos de esquerda e organizações populares, estudantis, sindicais.

Temos visto um debate bastante pobre, em que parte da esquerda, perplexa, reproduz alguns discursos deslegitimadores da mobilização social que até então ficavam restritos à direita. Governistas e antigovernistas, com petistas e antipetistas à frente, têm se limitado a apontar os dedos uns para os outros, numa disputa insana que alimenta a espiral do ódio e da incompreensão. Mas a esquerda crítica pode se salvar caso consiga desvencilhar-se do debate rasteiro e tente compreender – em vez de apenas rechaçar – o que está acontecendo na sociedade brasileira.

É preciso deixar de ridicularizar instantaneamente os recentes protestos e panelaços. Os comentários que reinaram nas redes esquerdistas após as vaias recebidas por Dilma no discurso do Dia Internacional da Mulher erraram o alvo. Preferiram deslegitimar os reclames residenciais em vários aspectos: porque chamaram a presidenta de “vaca” e “vadia”; porque os ruídos teriam emanado das exclusivíssimas panelas Le Creuset; porque os descontentes jamais haviam pegado na caçarola para cozinhar o próprio feijão; porque sequer deixaram o conforto de suas varandas-gourmet para xingar a presidenta; porque os desagradáveis barulhos foram ouvidos apenas nos bairros mais chiques.

Quando os autores do panelaço desceram pra rua, uma semana depois, começou-se a dizer que eram apenas brancos loiros da elite; que não havia negros nem gente da periferia pedindo impeachment; que bonecos do Lula e da Dilma degolados, cartazes reivindicando intervenção militar e abraços calorosos na polícia revelavam os motivos inconfessáveis da massa ignara; que as contagens do Datafolha, até então braço estatístico da tal “imprensa golpista”, desmentiram a PM e expressaram a verdade sobre o número de manifestantes reacionários; que vestir-se com a camisa da Confederação Brasileira de Futebol e reclamar de corrupção era prova de que essas pessoas não sabem o que estão fazendo.

Mais ou menos verdadeiras, mais ou menos relevantes, o fato é que nenhuma dessas críticas alcança o nervo. Tampouco rompem com a lógica que alimenta o confronto PT x Anti-PT que estamos vendo e vivendo com cada vez mais intensidade. Serve para produzir memes e viralizar entre os amiguinhos nas redes sociais. Serve também pra arrancar boas risadas – e os deuses atestam a importância do riso. Mas só. A tentativa de compreensão passa longe.

O que muita gente de esquerda tentou fazer depois dos panelaços e protestos foi se agarrar em alguns casos isolados e acreditar – ou fazer acreditar – que representavam o todo. Nada mais falso, nada mais direitoso. Parece a Veja tentando destruir lutas sociais inteiras porque um integrante do movimento quebrou vidraças ou xingou o repórter da Globo. Pode ser que alguém tenha batido frigideiras francesas durante o discurso da Dilma, o pronunciamento de seus ministros e sua aparição no Jornal Nacional. Mas é óbvio que nem todos os paneleiros fizeram o mesmo. Caso contrário, a Le Creuset seria uma das empresas mais lucrativas no país. O mesmo com as especulações sobre varandas-gourmet: não há tantas assim em São Paulo, há?

Quanto ao machismo, presidenta ou não, é indiscutível que chamar uma mulher de “vaca” ou “vadia” é uma atitude detestável. Mas não tem a ver essencialmente com machismo os palavrões cuspidos contra Dilma. Numa sociedade como a nossa, que submete, tolera e por vezes incentiva inúmeras formas de violência contra a mulher, deve indignar, claro, mas não deveria ser inesperado que uma chefa de Estado padecesse o mesmo mal que tantas brasileiras todos os dias. Num acesso de raiva, a ofensa sexista é a primeira que vem à língua. Odioso, mas hemos de convir que machismo, no caso do panelaço, é apenas um ramo da querela, não seu caule – e muito menos suas raízes. Não há porque deslegitimar o protesto por causa disso, mesmo que, com isso, a grita se empobreça ainda mais. Até porque não implodimos reivindicações de amplos setores da esquerda, que são justas, apenas porque seus representantes são machistas.

O buraco também é mais profundo do que sugerem as avaliações de que a rebeldia vem apenas da elite. As pesquisas indicam que a popularidade do governo está ruim em todos os níveis sociais, mas ninguém pode negar que os opositores mais ferrenhos de Dilma estão concentrados nas classes média, média alta e alta. Pode-se considerar que, num país desigual, como o Brasil, quem está localizado nestes estratos faz parte de uma certa elite. Sim. Mas a imagem de madames oxigenadas e coxinhas de camisa polo babando impropérios carece de fundamento. Acontecem, claro, mas são demonstrações marginais frente a um mar de descontentamento.

A multidão que foi à Avenida Paulista no domingo era essencialmente a mesma gente comum que caminha pelos centros da cidade, indo e voltando do trabalho todos os dias. Estão nos shoppings, nas academias, nas universidades públicas e privadas. Pobres e miseráveis? Talvez alguns poucos, quase imperceptíveis. Majoritariamente brancos? Sem dúvida. Podres de rico? Certamente não, quiçá uns quantos aqui e ali. Mas a esquerda também possui membros cheios da grana – e que não devem ser menosprezados apenas por isso, como costuma ocorrer.

Do lado de cá, tampouco temos conseguido mobilizar massivamente as periferias. Nem por isso nos apressamos em dizer que nossas demandas são injustas. Recentemente, o próprio PT tentou desmoralizar os protestos contra o aumento das tarifas de transporte público em São Paulo dizendo que os manifestantes não passavam de riquinhos revoltados sem causa. Um belo argumento, não? A direita faz o mesmo quando convém – e já passou da hora de jogar no lixo os argumentos de conveniência. As críticas sobre ausência de negros ou moradores dos bairros mais pobres nas manifestações de domingo, por mais que sejam parcialmente verdadeiras, são inócuas para a causa que está sendo defendida nas ruas.

Ao reclamar do excessivo poderio de alguns aristocráticos empresários de rádio, jornal e TV, o governo parece esquecer que teve doze anos para reduzi-lo e distribui-lo, com vistas à construção de uma comunicação mais justa e condizente com a realidade do país. Sequer tentou. Reclamar é sempre mais fácil que lutar, mesmo quando se tem consigo uma parcela significativa da população disposta a vestir vermelho e tomar as ruas em prol de mudanças reais. Ou tinha.

Nestes dois meses e meio de mandato, Dilma se afastou ainda mais dos eleitores que a elegeram esperando uma fantasiosa guinada à esquerda. A nomeação de ministros em nada identificados com as lutas sociais e as políticas de ajuste fiscal que penalizam os penalizados de sempre enquanto aliviam a barra dos mais beneficiados acabaram por divorciar o governo da esquerda. Apenas setores mais fanáticos recusam-se a enxergá-lo. E ainda acreditam que, convocado, o povo vai pra rua defender seus líderes. É um governo que agrada os dirigentes da burocracia social, vira as costas para as bases e afaga adversários, enquanto intensifica injustiças contra camponeses e indígenas com obras de “desenvolvimento” nos rincões do país. Não há como defendê-lo à esquerda.

Por isso, não devemos entrar no teatrinho encenado por petistas e antipetistas. É um jogo de fantoches que serve ao poder e não ao empoderamento. Se é verdade que toda crise guarda também sua dose de oportunidade, ei-la. Nós sabemos que a corrupção não é culpa exclusivamente dos partidos que ora ocupam o Planalto, a Esplanada e as empresas públicas da União. Nós sabemos que o sistema está corrompido há décadas. Nós sabemos a quem serve o Estado. Por isso, não devemos santificar o resultado das eleições como alguns setores progressistas vêm fazendo de maneira inédita. Se a esquerda sempre defendeu que política se faz todos os dias, que as urnas são pequenas demais para comportar nossos sonhos, por que esse fetiche agora com o resultado do pleito?

Demonstrar insatisfação com um determinado governo e pedir sua saída pelas vias constitucionais não é mero golpismo. Assim sendo, fomos e somos golpistas convictos quando pedimos Fora FHC, Fora Collor, Fora Alckmin, Fora Maluf, fora tantos outros governantes corruptos, irresponsáveis e assassinos que já ocuparam palácios de norte a sul do país. Não acredito que os senhores em questão se comparem à figura de Dilma, que os supera largamente em dignidade, mas compreendo que os eleitores da direita façam juízo semelhante à presidenta de turno. Por mais que discorde dos motivos que os fazem gritar pelo impeachment, não posso desmerecê-los porque sim. Seria tremenda hipocrisia.

Os golpistas convictos existem e também estavam nas ruas no domingo. Portavam desavergonhadamente cartazes reivindicando intervenção militar. Aliás, ninguém naquela multidão aparentava constrangimento. Estavam todos muito à vontade – o que também deve ser sinal de alguma coisa que não esse nazifascismo monstruoso de que tanto se fala nas redes esquerdistas. Sabe aquele familiar com quem sempre acabamos discutindo na ceia de Natal? Aquele pai, aquela mãe, aquele irmão, tio ou primo que é gente fina, trabalhador, engraçado, mas que não compartilha absolutamente nada de suas convicções políticas? Ele poderia perfeitamente haver marchado na Paulista dia 15 de março. Se é que não marchou. É triste que estivesse ombro a ombro com verdadeiros tresloucados ideológicos. Mas talvez nem tenha percebido – e isso é ainda mais triste.

Toda a formação política que temos ou julgamos ter, as horas intermináveis de leituras, reflexões e discussões, as causas em que nos metemos e as mobilizações de que participamos não parecem haver resultado no mesmo poder de convocação e persuasão de que goza, hoje, um grupinho de rapazes com a ajuda da internet e um corolário de lugares-comuns que colam bem nos telejornais da noite. Que há algo muito errado com o PT, já sabemos faz bastante tempo. Mas agora percebemos que também há algo muito errado com a esquerda em geral. Perder a lucidez diante da adversidade e deixar-se levar pelo que dizem piadas engraçadinhas de internet pode nos conduzir a um lugar ainda pior que a perplexidade.

Imagem: Pieter Bruegel, A Parábola dos Cegos (1568)

Fonte: Outras Palavras

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