Pobreza Política

pobreza-polPor Thiago Burckhart, para Desacato.info.

Em um de seus escritos mais conhecidos Hannah Arendt definiu a política como a convivência entre diferentes. A humanidade se organiza politicamente para certas finalidades em comum num espaço em que a pluralidade é a base. Para a pensadora, a humanidade se realiza na política no tocante aos direitos iguais que os mais diferentes garantem a si próprios. É exatamente neste ponto, na garantia e concessão voluntária de uma reivindicação juridicamente equânime entre todos, que se reconhece e se concretiza a pluralidade da humanidade.

A comum diferença na humanidade – que é o que atribui a sua própria existência – é a marca do pensamento político de Hannah Arendt. A política, nesse contexto, é a arte de se relacionar com o diferente em pé de igualdade. Trata-se do desafio do reconhecimento e da alteridade enquanto prática política, ideário que pontua grande parte do pensamento moderno e ainda se coloca como questão chave do nosso tempo. Igualdade e diferença ainda são reivindicações políticas, sociais e morais contemporâneas. São elevados a um caráter de centralidade na atualidade, em que se convive com a ascensão social e política de autoritarismos, fundamentalismos e fascismos.

Política como reconhecimento

A pobreza política, nas palavras de Pedro Demo, é uma tragédia histórica, na mesma direção da pobreza socioeconômica, e se demonstra, dentre outras coisas, na incapacidade de institucionalização da democracia. A pobreza política guarda profunda relação com a pobreza socioeconômica, de modo que existe uma tendência – que nem sempre é totalmente certa – do sujeito economicamente pobre ser também politicamente pobre. Para Pedro Demo, a pobreza política está relacionada com a incapacidade de estabelecer vínculos de cidadania, de ser capaz de ter consciência política e de se organizar para a defesa de seus direitos.

No entanto, a pobreza política também se manifesta na incapacidade de compreensão da política enquanto relação de diferentes, implicando na subalternização de determinadas diferenças. Quando se nega direitos de igualdade a alguém pelo simples fato de ser “diferente” – de acordo com o padrão estético do poder – também há aí a construção de uma relação de pobreza política, onde a política é reduzida à violência e discriminação.

Nesse contexto, grande parcela da população mundial vive imersa em contextos de subcidadania e pobreza política. As reivindicações por reconhecimento, marcas do nosso tempo, ainda ocorrem porque os ideais não foram plenamente efetivados, e se encontram em risco de ser ainda mais negligenciados – como demonstrou recentemente a Womens’ March nos Estados Unidos, mas também de diversos outros movimentos no Brasil, América Latina e Europa.

Pensando o contexto brasileiro

Recente pesquisa realizada pela Latinobarómetro e publicada em setembro de 2016 demonstrou que o apoio à democracia na América Latina caiu novamente em 2016. O respaldo ao ideário democrático entre latino-americanos passou de 56% a 54%. Cresceu na mesma proporção o percentual de pessoas que se consideram “indiferentes” ao fato de um regime ser democrático ou não, passando de 20% para 23%. O Brasil é o país que lidera o pessimismo com a democracia, tendo o apoio à democracia caído de 54% (2015) para 32%.

Além disso, somos um dos países mais violentos do mundo. De acordo com dados da ONG Anistia Internacional publicados em 2015, o Brasil mata mais que regiões de guerra e vive uma crise na segurança pública. Também é um dos países que mais mata LGBTs, marcado por repressão a protestos e violência policial, onde a tortura cresceu mais na democracia formal que no período de ditadura, que convive com uma realidade de criminalização do aborto, da pobreza, impunidade histórica aos detentores do poder político e econômico e relação difícil entre Estado e minorias étnico-raciais.

Os dados são preocupantes para o país e demonstram que o Brasil convive com uma democracia de baixa (ou baixíssima) intensidade, marcada por uma profunda desigualdade econômica, onde a política se reduz (em muitos casos) a pura violência. Eles ainda evidenciam que o não reconhecimento é uma construção sociocultural que pode ser projetada nas instâncias políticas. O contrário da pobreza política é a cidadania organizada, que compõe a formação de organizações fortes e ativas, movimentos sociais, pressão política, consciência sobre sua dinâmica e não-subalternização. Nesse sentido, o reconhecimento da pobreza política é o primeiro passo para superá-la e para construir laços de emancipação subjetiva e objetiva. É somente mediante essa tomada de consciência que será possível reverter este quadro preocupante que marca a realidade brasileira.

Thiago Burckhart é Pesquisador e Mestrando em Direito pela UFSC.

Imagem: Livro Pobreza Política, de Pedro Demo.

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