Pobreza estrutural

Por Thiago Burckhart, Blumenau, para Desacato.info.

Lindalva é uma mulher pobre do sertão nordestino, tão pobre que não tem dinheiro nem mesmo para comprar um par de chinelos novos, pois se optar em compra-lo tem a certeza de que passará fome. Sua face e seu olhar evidenciam o sofrimento que a pobreza e a miséria proporcionam ao ser humano: a privação de poder ser. Lindalva nunca teve acesso à educação, somente hoje com 55 anos ela aprendeu o que é a letra A. Lindalva vive numa condição de miséria, sem acesso a uma série de direitos que são a ela formalmente assegurados Sua condição, entretanto, é a realidade de uma grandiosa parte da população mundial, imersa em uma pobreza estrutural do sistema de produção.

A história de Lindalva é contada no filme-documentário “Humano – uma viagem pela vida”, do fotógrafo, jornalista e cineasta francês Yann Arthus-Bertrand. Esse filme (que será lançado ainda este ano) nos faz um questionamento ético: o que nos faz humanos? A questão é contrastada com o relato de uma série de pessoas de suas próprias vidas. Todas histórias reais e concretas, situações vividas e contadas pelos próprios protagonistas de seus dramas pessoais e coletivos. A questão levantada pelo filme – que deve ficar no ar para que cada um reflita por si só – é uma questão negligenciada em nosso tempo de pobreza poética (e ética). Contudo, é justamente esta negligência que faz com que também negligenciemos a pobreza estrutural que marca as sociedades complexas e que é mascarada pela publicidade.

Um recente relatório feito pela ONG britânica OXFAM International e publicado em 2015, apontou que no ano de 2016 1% da população deteria 50% de toda a riqueza do mundo. Recentemente, também vinculou nos sítios eletrônicos que apesar da crise econômica vivenciada pelo país, os bancos continuam a engrandecer seus lucros. A pobreza, assim, torna-se estrutural, como já afirmava Milton Santos, ou seja, faz parte da estrutura do sistema de produção. Isso evidencia uma estrutura de violência institucionalizada, que priva os seres “economicamente miseráveis” da possibilidade de construírem uma vida digna. Uma violência também financiada pelos próprios Estados, por meio do pagamento de juros e amortizações de uma dívida pública que representa quase 50% do PIB, e que não é nem mesmo auditada.

Norberto Bobbio afirmava que o século XX ficou conhecido como a “era dos direitos”, pelo fato de ter sido o momento histórico onde ocorreu o aprimoramento de uma série normas nacionais e internacionais relativas aos direitos humanos e fundamentais. No entanto, esse mesmo momento foi marcado por sua constante violação, ou seja, a era dos direitos também é a era da violação dos direitos. A pobreza já é, por si só, uma privação de direitos, uma violação a uma série de tratados internacionais e até mesmo à Constituição Federal que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III, CFRB).

Essa privação é também uma violência, pois implica na extirpação da liberdade individual e coletiva. Não se trata de uma condição de liberdade, mas de um aprisionamento tanto material quanto subjetivo. É, como afirma Jessé Souza, a ralé brasileira desprovida não somente de condições econômicas dignas, mas também e sobretudo, de capital cultural, que é o aspecto invisível da desigualdade, como afirma o Prof. Jessé. Isso permite a difusão da ideologia do economicismo não somente entre os economistas, mas também entre a população, além de legitimar o privilégio de poucos. A violência se difunde nesta estrutura social de reprodução de desigualdades visíveis e invisíveis.

A situação exposta evidencia nosso maior conflito social e político, como também argumenta Jessé Souza, que é o “consentimento por toda a sociedade”, de toda uma classe de indivíduos “precarizados” que se reproduz há gerações enquanto tal.

A grande questão de nosso tempo é, sem dúvida, uma questão ética. Talvez a questão que é colocada pelo filme-documentário exposta acima nos seja útil para compreender as situações de injustiça que constituem a condição humana. É o aprimoramento dessa sensibilidade frente ao outro que pode mover a sociedade para a dimensão mais justa, da mesma forma que recuperar o sentido da política é urgente e necessário para que transformações sejam possíveis.

Thiago Burckhart é estudante de Direito.

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