Pesquisa aponta que 92% das mães nas favelas dizem que faltará comida após um mês de isolamento

Foto: Gonzagas/Pixabay

Por Ligia Guimarães.

“Muitas pessoas entraram na linha de pobreza da noite para o dia. O casal que trabalhava no shopping na semana retrasada, que recebia por semana, fez a compra da semana passada e nesta semana já não está mais trabalhando. Porque o shopping fechou, o patrão também quebrou. Hoje esse casal está com três filhos em casa, que não estão mais comendo na escola. Você tem o casal em casa, os três filhos e muitas vezes os pais do casal, idosos, que moram com eles.”

É a partir da cena descrita acima que o produtor cultural Celso Athayde, fundador e coordenador geral da Central Única das Favelas (CUFA), organização fundada há 20 anos e que reúne 500 comunidades em todo o país, explica a situação de urgência que vivem os 13,5 milhões de brasileiros que moram nas favelas e depararam-se, subitamente, com a chegada do coronavírus ao Brasil.

Na tentativa de levar ajuda a essas comunidades que até agora não foram contempladas com um plano público nacional específico de combate à covid-19, o desafio, diz Athayde, era definir quais deveriam ser as pessoas a receberem socorro e doações prioritariamente nas iniciativas assistenciais da CUFA.

Pesquisa realizada pelo Data Favela e pelo Instituto Locomotiva aponta que as favelas do Brasil têm 5,2 milhões de mães. Destas, 72% afirmam que a alimentação de sua família ficará prejudicada pela ausência de renda, durante o isolamento social. 73% dizem que não têm nenhuma poupança que permita manter os gastos sem trabalhar por um dia que seja. 92% dizem que terão dificuldade para comprar comida após um mês sem renda. Oito a cada dez dizem que a renda já caiu por causa do coronavírus, e 76% relatam que, com os filhos em casa sem ir para a escola, os gastos em casa já aumentaram.

“Os mais frágeis da sociedade são os moradores de favela. Os mais frágeis entre os favelados são as mulheres. E os mais frágeis entre as mulheres são as mães. Por que? Porque elas cuidam dos filhos, muitas vezes trabalham no emprego informal, costurando, fazendo unha, e ainda cuidam dos velhos. Porque todos os velhos, 90% dos idosos das favelas, são as mulheres que cuidam: sejam noras ou sejam filhas”.

E, diante da pandemia do coronavírus, a sobrecarga das mães da favela é também emocional: como cuidar de tudo isso, subitamente, sem renda. “Ela olha para o idoso, que é o pai ou o idoso, e fala: o que é que eu faço com ele? O que eu faço com as crianças? É desespero”, diz Athayde, a respeito dos dados da pesquisa.

As pesquisas do Data Favela, fundado por Athayde e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, são realizadas pelos moradores das comunidades, que são treinados e supervisionados pela equipe do instituto de pesquisa. Para este levantamento, realizado entre os dias 26 e 27 de março de 2020, foram entrevistadas 621 mulheres maiores de 16 anos, com filhos, moradoras de 260 favelas em todos os Estados do país. A margem de erro da pesquisa é de 2,9 pontos percentuais para mais ou para menos.

A divulgação da pesquisa faz parte das ações de lançamento, nesta quinta-feira (2), da campanha “Mãe de Favela”, criada para arrecadar recursos a serem distribuídos para mães das favelas em todo o país. A opção, explica o produtor cultural, é baseada em evidências e estudos, inclusive sobre o programa Bolsa Família, de que o dinheiro da assistência dado à mulher gera muito mais impacto social que o dado ao homem da família.

“A mulher controla melhor o orçamento doméstico, faz melhor uso do dinheiro e é a pessoa que cuida tanto das crianças quanto dos idosos, que são o grupo de risco para o coronavírus”, diz Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva. “A certeza do bom uso do dinheiro tem a ver com essa escolha pela mãe de família”.

As beneficiadas receberão, por dois meses, um auxílio de R$ 120 reais e batizado de “vale-mãe”. “Ela recebe os R$ 120 no próximo dia 15. Cada favela está indo em busca desse perfil de mãe, definido a partir da pesquisa, para serem as primeiras beneficiadas”, diz.

O dinheiro será recebido pelo celular, a partir de uma parceria com a empresa de pagamentos e transferências PicPay, mediante cadastramento do CPF pelo telefone. O dinheiro do benefício será arrecadado pela CUFA por meio da campanha lançada na terça. A fase piloto começou com 5 mil mães, mas já têm 30 mil mulheres cadastradas. A intenção é, de acordo com a arrecadação, ampliar o valor e estender o período de concessão das bolsas.

A campanha, explica o produtor, já ganhou o apoio de empresas e artistas, como a cantora Iza, Lulu Santos, Zeca Pagodinho, Taís Araújo e Lázaro Ramos, Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. A partir de amanhã, a ideia é que qualquer um possa ajudar com doações. “Lançamos o site para receber doações pelo PicPay e vamos criar uma vaquinha pelo site. Teremos auditoria da Pro Audit, uma auditoria respeitada, que vai auditar a contagem do site. Além disso, as empresas doadoras também designarão auditores próprios”. “Para que todos tenham a confiança de que o dinheiro tem objetivo claro”.

E o poder público?

Embora as favelas sejam apontadas como as regiões mais vulneráveis ao coronavírus, pela combinação da falta de espaço, escassez de recursos, poupança, estoque de comida e saneamento básico para manter as condições de higiene necessárias para evitar a propagação da doença, elas não foram contempladas em nenhum plano nacional específico de prevenção e combate à covid-19.

Meirelles, do Locomotiva, diz que, embora o início da pandemia tenha se dado na parcela mais rica da sociedade, a concentração demográfica e as limitações sociais das favelas representam, do ponto de vista da saúde pública, um risco também para quem mora no “asfalto”.

“Não é apenas um risco para as favelas, mas também para os moradores de outras regiões da cidade. Tem se feito essa discussão sobre saúde ou economia, mas você não retoma a economia com uma pilha de corpos”, diz, em referência a falas como as do presidente Jair Bolsonaro, que defendeu a prática do “isolamento vertical”, que abrangeria apenas as pessoas que se encontram no grupo de risco — como idosos e portadores de doenças crônicas —, para que as demais pudessem voltar à normalidade e trabalhar.

“Na prática”, diz Meirelles, “quando se fala dos moradores de favela, estão usando o retrato da desigualdade para dizer que eles têm que voltar a trabalhar. Só que isso não existe. Não me parece digno que a sociedade obrigue que essas pessoas escolham de quem vão abrir mão da sua família para garantir a retomada da economia.”

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