Personagens de Dostoiévski são instrumentos de conhecimento da alma humana

Por Gustavo Bastos.

O romance dostoievskiano pode ser entendido como uma espécie de tragédia, o meio romanesco aqui também é utilizado como um instrumento de conhecimento da alma humana pelos personagens deste autor que atuou como um verdadeiro psicólogo ficcional. O caráter sui generis do romance pelas mãos de Dostoiévski é este em que as personagens passam por transformações, recomeços, na luta de contrariar o destino, de enfrentar com toda a alma as agruras do desespero e da loucura, aqui a tragédia dostoievskiana ganha sentido amplo e profundo, com todo o caráter de conhecimento intuitivo das relações e situações da alma humana que são possíveis para um romancista dar exemplo e fazer a sua construção, o que Dostoiévski consegue como poucos, e de um modo único, com a sua impressão e assinatura.
Dostoiévski tem suas personagens numa trama que nem sempre é bem-sucedida, pois a ideia de vitória na vida pode resultar no infernal malogro das intenções, aprofundando, no entanto, o caráter e a definição sólida de tais figuras do romance dostoievskiano, e que pela escrita do autor nos aparecem como personagens falhados tais como os humildes, fracassados, vencidos, numa pedagogia que revela o humano em situações-limite, e que também nos leva a esta alma ou análise psíquica dos dilemas e dores demasiado humanos da trama romanesca dostoievskiana.
A piedade do autor para com tais personagens na sua ficção também nos dá esta dimensão do caráter humano tanto do trabalho literário como de quem o realiza, que é o homem biográfico Dostoiévski, pois a riqueza de suas personagens também nos revela o caráter deste autor, um dos mais destacados da História da literatura russa e mundial, pois há uma verdadeira participação autoral neste sofrimento universal que nos dá a dimensão do romance dostoievskiano, a medida do destino humano está posta como exemplos em vários destes romances do autor.
Dostoiévski passa com seus personagens por experiências diversas como sentimentos de revolta e de ódio, anseios vingativos, toda uma teia de relações em que as paixões transbordam, um lado obscuro da alma eclode e, no entanto, tal situação negativa nos dá uma dimensão de fé inaudita pelo senso comum, pois está iluminada mesmo em tramas de caráter alucinante e de situações dolorosas. Portanto, há uma luz, o divino se manifesta nesta trama visível e caótica do destino humano, nas forças dispersivas do mal temos, como efeito reverso, a luz da fé ou ainda da própria razão natural.
Dostoiévski elabora suas personagens de um modo que o leitor, já nos seus primeiros contatos com tais figuras, fica sabendo bem em que terreno está pisando, pois instantaneamente no romance dostoievskiano as personagens já se nos apresentam inteiras, em todo o seu caráter e luta, tais espíritos puros e sólidos lutando contra o sofrimento universal, esta balança das situações em que a provação é a regra, na ideia ou imagem precípua da queda.
E como nos diz Hamilton Nogueira: “As suas resoluções, como as dos anjos, são por assim dizer irrevogáveis. Não há possibilidade de volta, nem mesmo de parada. Tudo obedece àquele ritmo trágico.” Temos uma estrutura psicológica firme e bem definida nas personagens dostoievskianas, nos revelando almas impassíveis face aos fatos mais extraordinários, como se a predestinação fosse a forma dominante da percepção exercida por tais figuras criadas pelo autor.
O fenômeno humano e comum do desespero aparece aqui como a intensidade máxima do sofrimento, mas que temos também que tal sofrimento não é definido por sua dimensão dorida, mas pela luta de forças antagônicas, a luta interna reveste a angústia de tais personagens, e não uma medida de intensidade de tais sofrimentos, uma vez que a personagem dostoievskiana tem a sua liberdade e sua alma inteira em conflito contra os limites impostos pelas formas visíveis da natureza humana, tal força oculta e angélica, que tende à vida contemplativa, é sucumbida no mundo cotidiano e físico dos sentidos terrenos e suas agruras.
O mundo romanesco de Dostoiévski, por conseguinte, é revelador de um universo humano vertiginoso, pleno de contradições, de oscilações extremas e repletas de paradoxo, como se dá comumente em almas intensas e autênticas, com movimentos rápidos e intuições imediatas, não existindo nenhuma dimensão de indiferença em tais personagens, familiarizadas com a tragédia humana que são, e que são, portanto, personagens com convicções profundas e caráter constante, isto é, com condutas claras. E o resultado é que tais personagens, partícipes diretas do sofrimento universal, buscam a solução para o problema do destino e da tragédia, numa pesquisa sequiosa pela verdade, com posições extremas, e o mistério da vida então perpassa todo o dilema e vivência ativa de tais personagens dostoievskianas.
A eclosão de sentimentos antagônicos nas personagens dostoievskianas é bem comum, pois amor e ódio se revezam em tais corações com uma presteza nauseante, a amplitude psicológica de tais figuras desenhadas por Dostoiévski dá vazão para estas alternâncias bruscas de sensações num mesmo ambiente ou situação, e a alma pode ter como uma sua definição dostoievskiana como uma ideia de contradição, o paradoxo dos sentimentos reina como o sentido de sua própria riqueza e da amplidão da percepção de tais almas sofredoras.
Ou como nos diz Hamilton Nogueira sobre Dostoiévski: “Ele é o soberano criador dos estados angustiosos, é o mestre incomparável no jogo dificílimo da fixação desses imponderáveis que constituem a vida mesmo do espírito, vida ilógica, inatingível nas suas raízes, mas vagamente perceptível no mundo tumultuoso de ideias e de sensações que afloram à superfície da nossa consciência.”
NASTÁSSIA FILIPOVNA
Nastássia Filipovna é uma dessas personagens dostoievskianas que são plenas de contradições, com sentimentos divergentes e desordenados convivendo na mesma alma, é também devido a esta amplitude de sensações que temos uma das chaves do enigma interior de Nastássia. E tal se dá, isto é, este enigma que envolve várias camadas de uma luta interior intensa, por conseguinte, em meio à incompreensão de um mundo medíocre, amiúde unidimensional ou preto no branco. Nastássia Filipovna, por sua vez, como nos diz Hamilton Nogueira : “é um dos mais extraordinários tipos de mulher criados pelos romancistas em geral, e sem dúvida a máxima criação feminina de Dostoiévski.”
E segue Hamilton Nogueira, quando nos diz: “o segredo do seu mundo interior, as suas lutas íntimas, a sua imensa amargura, a sua profunda desolação, o seu desespero ao ver-se arrastada por um turbilhão de lama, e sobretudo o fundo de pureza que ainda perdura na sua alma, permanecem inatingíveis ao olhar profano dos homens que a rodeiam. Somente uma outra criatura também ordenada no sentido da perfeição poderá compreender a tragédia de sua vida e contemplar maravilhado o lado luminoso da sua realidade existencial, o príncipe Muischine. Esse jovem de olhos claros e luminosos, de palavra suave, olhando-a com expressão de quem a conhecia, impressionou profundamente o espírito de Nastássia.”
É tanto a construção da personagem como a história de Nastássia Filipovna que faz de O Idiota uma obra-prima, pois é revelador de uma escrita com alma rebelde, o que não seria comum num espírito resignado de ideologia reacionária que estava no homem Dostoiévski. Neste romance temos um autor tanto trágico e lírico, como também satírico, e temos que Nastássia Filipovna está situada entre as personagens femininas de maior envergadura e complexidade da literatura russa e mundial.
O romance O Idiota tem a participação assídua da personagem Nastássia, pois ela reina no centro dos acontecimentos, dando assim a sua dimensão de grande personagem da obra literária de Dostoiévski. E em meio a canalhas e beberrões temos uma Nastássia que atravessa altiva a ignomínia geral, com todo o rigor de um caráter firme e uma alma inteira e bem edificada, pois ela conhecia todos os celerados que a cercava, sem sucumbir a tais odores depravados, num plano de vingança bem urdido que deixava ao sabor das intenções de farsa de tais homens como um modo de fazê-los cavar as suas próprias ruínas devido aos impulsos podres que Nastássia manipulava com episódios desenhados por Dostoiévski como verdadeiras cenas de teatro, quando o autor é mais uma vez o plasmador perfeito tanto da psicologia individual como da coletiva.
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