Pedido de perdão de Portugal pelo papel na escravatura “vem tarde”

Na quinta-feira, o Presidente português visita a ilha de Gorée, ou Goreia, no Senegal, um dos locais mais simbólicos do comércio de escravos onde várias figuras internacionais pediram perdão pelos atos dos seus povos.

A visita de Marcelo Rebelo de Sousa à ilha é a primeira de um chefe de Estado português ao local a partir do qual os portugueses dominaram o comércio mundial de escravos a partir do século XV “reveste-se de um elevado significado histórico”, afirmou Gerhardt Sibert, professor na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), em São Francisco do Conde, no estado brasileiro da Baía.

Mas a visita e o “gesto simbólico” de um eventual pedido de perdão de um país, cuja própria coroa teve um papel cimeiro no comércio de escravos ao longo de mais de três séculos, vem “muito tarde”, considerou o investigador.

“Outros chefes de Estado e de governo já fizeram isso há muito tempo”, lembra o docente. O então primeiro-ministro francês, Michel Rocard, visitou Goreia em 1981 e o papa João Paulo II pediu aí desculpas há 25 anos pelo papel da igreja católica e do Vaticano na escravatura e no tráfico de escravos.

Também os três últimos presidentes norte-americanos, Bill Clinton, em 1998, George W. Bush em 2008 e Barack Obama em 2013 visitaram a ilha senegalesa e aí assumiram o “mea culpa” dos respetivos estados na escravatura, à semelhança do que, em 2005, fez o ex-presidente brasileiro Luís Lula da Silva.

“Nestes termos, Portugal fica muito apertado. Tão apertado quanto ficou no processo da descolonização”, considera Seibert.

Também Fernando Jorge Cardoso, especialista em estudos africanos e economia do desenvolvimento no Instituto Marques de Valle Flor (IMVF), concede que Portugal chega “tarde” a Goreia. Mas, se “chegamos tão tarde [é] porque só agora temos um Presidente chamado Marcelo Rebelo de Sousa”, acrescentou.

O atual presidente português não tem “complexos em fazê-lo” [ir ao local], e se Marcelo Rebelo de Sousa formular um eventual pedido de desculpas pelo papel de Portugal na escravatura, só ele, entre os chefes de Estado pós-25 de abril tem as características para o fazer, diz o investigador.

“Duvido muito que qualquer dos presidentes anteriores não tivesse complexos em fazê-lo. Acho que todos os presidentes anteriores devem ter tido complexos ou outro tipo de racionalidades para não o fazer. Marcelo Rebelo de Sousa é demasiado desprendido para ter esse tipo de complexos. Mário Soares não o faria, Cavaco Silva não o faria, Jorge Sampaio, possivelmente, chegou à conclusão racional que não tinha que pedir perdão a ninguém. Marcelo Rebelo de Sousa não tem problema absolutamente nenhum”, afirmou o diretor do gabinete de estudos estratégicos do IMVF.

“A ilha de Goreia, no Senegal, património mundial da humanidade desde 1978, foi um importante entreposto comercial, onde o principal produto exportado era o escravo africano. Nessa feitoria foram `armazenados` milhares de escravos – homens, mulheres e crianças, feitos prisioneiros e traficados, e o monopólio comercial era detido pela casa real portuguesa, sobretudo na segunda dinastia”, assinala Olga Iglesias Neves, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa.

“É muito importante o Presidente da República assumir todo este passado histórico”, sublinhou a especialista.

Quanto à oportunidade desse gesto “de alto significado histórico”, Olga Iglesias Neves não vê “esse problema de ser tarde”. O “povo diz que mais vale tarde do que nunca”, remata.

“Com este gesto, o Presidente está a indicar que devemos viver um tempo novo, mas sem esquecer que esse passado existiu. É importante para a nossa memória coletiva”, disse a investigadora, para quem “esta viagem pode potenciar as relações internacionais” em que Portugal estiver empenhado.

“Acho que esta questão da escravatura é tão importante. Não se pense que este gesto vai ser ignorado pelos países africanos. Acho que isto vai ter um grande impacto, desde logo pelo tipo de personalidade do Presidente da República, pelo tipo de abertura e forma de estar”, concluiu a investigadora.

Imagem: Marinha de Guerra Portuguesa

Fonte: RTP.

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