Parasita e sua metamorfose tragicômica

Para o senso comum das Américas, o Oriente poderia ser resumido aos seus animes e astros de K-pop como os principais produtos de sua indústria cultural. Nada melhor para romper esta superfície estereotipada do que o filme “Parasita”.

Imagem: Reprodução

Por Castor

Produzido na Coréia do Sul, o filme causou impacto e chamou atenção dos espectadores ocidentais, fato raro no mercado cinematográfico, de massas ou mais restrito, dominados por Hollywood e pela Europa. Reflexo disso, pelo menos no Brasil, são as sessões que continuam lotadas, mesmo após um bom tempo em cartaz, somado aos comentários e indicações de amigos, motivo pelo qual, inclusive, me levou a assisti-lo.

Talvez seu sucesso se deva a um fato muito bem retratado: o choque entre a riqueza e a miséria que edificam a sociedade capitalista, retratada pela tensão de suas relações sociais. Um filme que sofre uma metamorfose constante, expressa tanto no seu formato como na trama, criando assim um retrato tragicômico das relações sociais capitalistas.

Nota: Abaixo, o artigo terá spoilers.

Uma alegoria da competição entre trabalhadores

Para começar, vemos uma família pobre, sem perspectiva, numa situação desesperadora, transformar-se, com artifício do humor, em empregados exemplares de classe média. Aproveitar as oportunidades que surgem, malícia e persuasão, assim a família Kim é apresentada. Uma adaptabilidade muito familiar para nós frente a situações também familiares, mesmo o filme sendo feito do outro lado do mundo: dar o seu jeito frente ao desemprego e a precariedade do trabalho, enfrentar a miséria com todo arsenal e experiência de vida.

O filme tira ar dos pulmões pela suas reviravoltas. Uma montanha russa que se transforma da comédia mais debochada para o drama mais desesperador. Na simples abertura de uma sala secreta, o “jeitinho brasileiro” de nossos personagens coreanos, motivo de tão boas risadas – que nos fazem lembrar de personagens como Agostinho Carrara de “A Grande Família” – se transforma num pesadelo completo. A malandragem e sabotagem da família Kim, até então cômica, para conseguir empregos decentes, passando a perna nos outros funcionários da família Park, sofre uma metamorfose dramática.

O que no início nos foi apresentado como humor passa a ter a sua face mais realista: uma tragédia declarada que só se aprofunda e piora. A família Kim numa competição mortal contra a ex-governanta e seu marido, pelo direito à ficarem nas masmorras da luxuosa residência e os restos da família Park. Competição esta que retrata muito bem a realidade cruel que os trabalhadores enfrentam em todo o mundo. Diante do desemprego, da precarização do trabalho, o que mais as classes dominantes desejam é que aqueles que só dependem de sua força de trabalho para sobreviver disputem entre si os miseráveis empregos fornecidos, deixando de lado qualquer solidariedade de classe ou perspectiva de que o inimigo que ameaça seu sustento não é o outro trabalhador, e sim o patrão que só lucra com toda esta situação de miséria. Este fato dramático, sintoma do sistema capitalista, ocorre no Brasil, na Coréia do Sul, em qualquer canto do mundo.

Acasos de classe

Um temporal, pelos caprichos do clima, significou para a família Park um passeio frustrado, afinal o rio havia alagado, para a tristeza do filho mais novo; tiveram de voltar para sua mansão, jantar um delicioso prato e uma noite de sexo entre Sr. Park e Yeon-Kyo. Para a família Kim, pelo acaso, significou uma ameaça a seu sustento, o alagamento de sua casa e perda de seus pertences, numa situação desesperadora com o fim num abrigo com centenas de outros pobres que sofreram dura consequências por causa da chuva.

Vemos em São Paulo nas últimas semanas constantes alagamentos trágicos, não por acaso em bairros mais populares, que invadem casas e destroem os pertences de famílias, desde móveis até eletrodomésticos, muitas vezes parcelados e ainda não pagos. Não é raro vidas também terem perda total, além de carros, nessas enchentes. Este fato dramático, sintoma do sistema capitalista, ocorre no Brasil, na Coréia do Sul, em qualquer canto do mundo.

A consciência despertada pelo olfato

O filho mais novo abastado notara o mesmo cheiro do casal Kim. Em outra cena, dizia Sr Park que o cheiro de Ki-taek era meio indescritível, tentou comparar com coisas que davam o sentido do nojo, do mofado e sujo, semelhante ao odor sentido nos trens, fato que sua esposa mal sabia notar, pois fazia anos que não andava de trem. Tudo isso aos ouvidos de Ki-taek, escondido embaixo da mesa. No dia seguinte, a esposa abastada, incomodada com o cheiro de Ki-taek, abria a janela do carro. Em todas estas cenas, era perceptível o incômodo do motorista. A raiva foi acumulando-se até que explodiu, em mais uma metamorfose.

Ao final do filme, numa carnificina aberta entre duas famílias pelo direito de servir a família Park, no belo jardim da mansão – não é necessário mais detalhes – Sr. Park se incomoda com o cheiro do rival, literalmente mortal, de Ki-taek e sua família. Um impulso incontrolável toma conta do motorista que enfia a faca no peito de Park. Aquela reação foi em nome tanto de si e sua família, como também em nome do rival: um auto-reconhecimento dos que frequentam os trens, um constante lembrete de sua condição social de miséria, igual também a de seu rival.

Mais uma metamorfose, dessa vez, não mais no estilo do filme, e sim no seu conteúdo. A rivalidade se transforma em consciência e solidariedade. Por trás de toda a competição sangrenta e absurda, Ki-taek se reconhece, por fim, em seu falso inimigo e ataca Park. No final, Ki-taek fica, literalmente, na mesma condição com aquele que competia: num calabouço, privado de qualquer bem estar.

O filme do começo ao fim debocha da moralidade. Embora incômodo, toda a malandragem da família Kim para conseguir os seus empregos é ofuscada diante da humilhação que a família de Ki-taek passa: seu ápice inaceitável foi simbolizado pela reação olfativa de nojo de Park. Em todo este confronto, o filme, no final das contas, coloca uma questão: quem são os verdadeiros parasitas? Não se trata de quem é menos “mal” ou “bonzinho” em suas ações.

Esqueçamos as mentiras, as passadas de perna dos Kim em sua busca por empregos dignos. Em todo o filme, foi na demonstração mais sutil de desprezo que se concentrou a maior crueldade: numa fungada, concentrava-se todo o ódio entre as classes sociais.

A familiaridade no distinto, a distinção no familiar

Para um espectador, habituado aos mesmos e velhos filmes de Hollywood, os quais cresci assistindo, “Parasita” gerou um turbilhão de reflexões contraditórias: uma linguagem tão distinta, uma realidade tão diferente, um filme tão exótico aos meus costumes, gerando reações de familiaridade. Problemas e contradições que podemos ver aqui na esquina de casa, também são fatos do outro lado do mundo.

Isto porque a imensa maioria da população mundial que depende de seu trabalho para sobreviver, mesmo tão divididos entre trabalhos formais e informais, terceirizados e efetivos, pelos muros das fronteiras nacionais ou diferenças culturais, estão conectados pela sua luta diária contra a miséria social, pela sobrevivência e garantia do pão de amanhã. O capitalismo é um sistema mundial, suas contradições se expressam de maneira universal assim como os problemas enfrentados pelos explorados.

Por outro lado, o que me é tão familiar aparece, agora, com total estranheza. Hollywood, Netflix, novelas, e uma longa lista, tudo aquilo com o qual fomos socializados e crescemos, é o que de fato está do outro lado do mundo, ou melhor, nas ilusões projetadas por aqueles que estão no topo do mundo. Os filmes assistidos por milhões, dos super heróis, dos mocinhos justiceiros, dos romances de princesas e príncipes, dos finais felizes, se desmoronam como aquilo que são: uma ilusão fictícia completamente distante de nossa realidade, na qual lutamos, sofremos, competimos, sem espaço para a “moral”, pela sobrevivência em meio a um sistema que depende da desigualdade social e sempre terá seus dilúvios contra os pobres e a negação dos finais felizes. Por isso também é necessário destruí-lo. Este fato, é válido no Brasil, na Coréia do Sul, em qualquer canto do mundo.

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