Para repensar narrativas de uma certa arte

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Todo juízo estético é efetivamente
uma avaliação cultural.
Susan Sontag

O retrato do jovem homem negro devolve ao pintor um rosto que, sem o encarar diretamente, confronta-o com sua condição de artista negro numa sociedade ainda profundamente hierárquica e racista. É um retrato no sentido denso do termo: uma pintura que se organiza em torno de um rosto e expõe o sujeito enquanto tal, em si mesmo.

Os pintores negros do século XIX recorreram à empatia neoclássica para fazer do retrato um laboratório discreto de reflexão sobre a hierarquia das imagens que reflete aquela dos próprios homens livres na ordem escravocrata. Diferente da produção fotográfica, que apostava na tipificação, este e outros retratos pintados conferem dignidade e subjetividade ao retratado, apresentando o negro pela primeira vez não mais apenas como mero objeto de inquietude etnográfica. Não são muitos os exemplos de tais retratos, mas cada um testemunha o surgimento de uma figuração humana mais autorreferencial e autônoma, capaz de refletir sobre a subjetividade e a expressividade de homens até então vistos como mera força de trabalho domesticável.

O autor do quadro, Antônio Rafael Pinto Bandeira, é um bom exemplo dessa geração de homens livres, instruído à custa de sua inteligência e tenacidade, tendo podido viver uma vida cosmopolita e nutrir projetos que não chegará a realizar. Acabará por suicidar-se aos 33 anos, depois da tentativa de abrir uma escola de artes em Niterói. Se o efeito das cotas raciais universitárias é hoje notável, imaginemos o que a mudança de status significava em um ambiente moldado pelas políticas de branqueamento e pela ideia positivista segundo a qual a contribuição africana à nossa cultura era somente negativa e desfibrante.

Moldados que fomos na cartilha modernista, habituamo-nos a menosprezar a arte brasileira do século XIX por seu caráter acadêmico e convencional, e nesse mesmo impulso minimizamos a importância das relações entre o tema e sua expressão, dando pouca ou nenhuma atenção ao tratamento que lhes era conferido na pintura do período. A ordem escravocrata foi analisada no âmbito estético por Rodrigo Naves na clave dos paradoxos entre modernização e arcaísmo, porém ele identifica a inadequação entre forma neoclássica e os conteúdos coloniais escravocratas, centrando-se no exemplo de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), sem considerar pertinentes a sua reflexão a produção dos pintores brasileiros surgidos logo em seguida. Os retratos de negros realizados pelos egressos das escolas de artes e ofícios e academias de belas-artes abrem outra perspectiva sobre as contradições do academicismo no ambiente monárquico.

Os libelos modernistas contra o século XIX contribuíram para a redução da pintura daquele período a uma imagem de mero exercício subserviente e ingênuo, amputado de pesquisa e independência artística. Assim como o Modernismo passou a poder ser lido, a contrapelo, em seus traços neorromânticos, o academicismo do século XIX pode ser lido em suas feições modernizantes, ajudando a tornar visível outra versão da história da gestação do espírito modernista no Brasil. Pelo prisma ainda hoje hegemônico, o academicismo teria passado totalmente ao largo dos movimentos da vanguarda pictórica europeia. Segundo a historiografia hegemônica, o único pintor permeável ao Impressionismo teria sido Eliseu Visconti. Sem tirar o mérito de Anita Malfatti, é igualmente necessário rever a narrativa que reforça a ideia de que a introdução do Expressionismo no Brasil foi um feito de responsabilidade exclusiva e sem precedentes de Malfatti, retornada de sua estadia nos Estados Unidos. São versões da história da arte para as quais a absorção de determinados movimentos de vanguarda comparecem como critério quase exclusivo de valoração, o que fica ainda mais problemático quando se notam a presença expressionista nos retratos de Arthur Timótheo e o intimismo impressionista absorvido por Antônio Rafael Pinto Bandeira.

Na contramão desse espírito historiográfico e museológico, destaca-se a exposição Negro de corpo e alma, que integrou as comemorações dos 500 anos do descobrimento, com curadoria de Nelson Aguilar. O historiador da arte Jorge Coli também vem realizando minuciosas releituras do século XIX brasileiro, mostrando entre outras coisas a novidade da supressão da figura do herói em Batalha do Avaí, de Pedro Américo, em favor da representação do espírito da guerra como um caos bélico ensandecido. Luciano Migliaccio, por sua vez, analisou a influência de Degas na pintura de Rodolfo Amoedo; Maraliz de Castro Vieira demonstrou em sua tese de doutorado a originalidade de Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, como ruptura dos protocolos da representação pictórica do herói nacional na pintura histórica. São perspectivas que desarmam o argumento herdado segundo o qual a pintura acadêmica seria uma repetição dos ensinamentos dos mestres, desprovida de pesquisa e totalmente alheia às vanguardas. Complementando esse quadro, Ana Paula Simioni vem estudando a presença das mulheres artistas no segundo reinado. É nesse movimento de revisão crítica da história da arte que a importância da obra dos pintores negros do Segundo Reinado começa a se destacar como fator de renovação artística. Para isso, contribuíram fortemente o trabalho pioneiro das curadorias de Emanuel Araújo no Museu Afro Brasil; os textos de Clarival do Prado Valladares; além das dissertações e teses de pesquisadoras mais jovens, como Renata Felinto e Renata Bittencourt; e, mais recentemente, a exposição organizada em 2015 por Tadeu Chiarelli com o trabalho dos artistas afrodescendentes do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Graças a essas e outras inciativas, vêm se delineando uma nova compreensão da iconografia de afrodescendentes no século XIX e um interesse pelo estudo mais aprofundado do trabalho de Firmino Monteiro, Horácio Hora, Estêvão Silva, Benedito Tobias, Emmanuel Zamor, entre outros.

Por que suas pinturas foram e são ainda pouco consideradas pela história da arte brasileira? Há inúmeras respostas para essa questão. Uma delas levará em consideração que o olhar sobre os gêneros considerados menos importantes – retrato e natureza-morta – seguiu durante longo tempo um tipo de estudo no registro do não artístico, adotando uma escala de valores através da qual se costuma associar essas pinturas à ilustração, à decoração e também à representação científica do século anterior, sem encará-las como dignas de ser cotejadas com outras obras artísticas do mesmo período. Num determinado quadro historiográfico, esses gêneros menores da pintura oitocentista estariam mais próximos de Eckhout e do naturalismo do século XVII, dos retratos antropológicos, descritivos de um jeito que atende à demanda colonial de entusiasmar os investidores daquela empresa usando a descrição para revelar a riqueza plástica dos trópicos. Seriam imagens reminiscentes da pré-modernidade, com toda a hierarquia representativa, não tendo portanto entrado naquilo que Jacques Rancière chamou de regime estético. Não olhamos para esses quadros a partir de sua predisposição à autonomia. Por isso mesmo, eles não foram contemplados com um juízo estético, mas valorizados do ponto de vista antropológico e ilustrativo de um cotidiano.

O academicismo, identificado com a normatividade europeia, entra em contraste com o Modernismo, que afirma seu traço telúrico. O grande inimigo dos modernistas era o Neoclassicismo, não tanto pelos temas e, sim, pela falta de autonomia da forma, mas acabam por rejeitá-lo sumariamente sem perceber que, na realização dos gêneros considerados menores, já havia uma autonomia da forma, pelo próprio sofrimento da forma expressa na matéria. Não se trata de ideias transplantadas e “fora do lugar” ideológico, mas de homens negros e em geral pobres “fora do lugar” social e cultural a eles reservado. Nesse sentido, a adoção de modelos negros por pintores negros tem um interesse para nós especial, pois, enquanto o Modernismo se pauta pelo estranhamento e o distanciamento, o Neoclassicismo baseava-se num pacto visual de empatia. Ao eleger modelos negros, conferindo-lhes a dignidade que o espírito neoclássico demandava, esses pintores operavam uma transgressão cultural ao dar visibilidade a esse grupo. Não do ponto de vista da constituição do tecido social do Brasil monárquico, mas enquanto sujeitos singulares.

Os ideais europeus oitocentistas produziram entre nós não apenas a comédia ideológica das “ideias fora do lugar”, mas instituições cujo funcionamento efetivo apresenta idiossincrasias esclarecedoras. Para entender a emergência dos pintores negros no âmbito oitocentista, é preciso reconhecer o fato de que a Academia Imperial de Belas Artes formava sobretudo homens de baixa renda, absorvendo alunos do Liceu de Artes e Ofícios e jovens em busca de formação na artesania, muitos dos quais inscritos nos cursos noturnos. Ao contrário do que acontecia na Europa, já com uma rede de museus e marchands bastante ativa, no Brasil ainda provinciano e de base rural as artes plásticas não eram consideradas carreira nobre, inclusive porque economicamente eram muito desvantajosas em relação a outras profissões emergentes. A formação artística atraía predominantemente rapazes pobres, uma vez que as mulheres não eram admitidas nessas instituições. Lembrando que, no Brasil, somente com o advento da República as mulheres começam a ser aceitas como alunas na Academia de Belas Artes, enquanto na França já existiam instituições abertas ao público misto, como era o caso da Académie Julian, inaugurada em 1867.

Entre os pintores do Segundo Reinado, destacam-se homens negros que puderam beneficiar-se das bolsas de estudos criadas por Pedro II e, mais tarde, do prêmio de viagem instituído por Nicolas-Antoine Taunay em 1844, que tinha como alvo os estudantes da Academia. Lembrando ainda que o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola de Belas Artes da Bahia foram fundados pelo intelectual afrodescendente Manuel Querino, autor dos primeiros livros de perfil biográfico de artistas brasileiros, entre eles As artes na Bahia e Artistas baianos, ambos de 1909, e por isso também conhecido como o Vasari brasileiro.

É necessário que as narrativas sobre o academicismo no século XIX questionem a imagem de elitismo e esnobismo que, por inércia, vem sendo associada à produção estética do Brasil monárquico a partir da inflexão modernista. Uma resenha de Machado de Assis sobre a exposição de Firmino Monteiro, realizada no edifício da Tipografia Nacional em 1882, deixa transparecerem as dificuldades que esses pintores enfrentavam para firmar-se no meio artístico. Diz Machado: “Resta-nos só o espaço necessário para dizer que o Monteiro é filho de si mesmo, de seu esforço, da sua tenacidade, da sua confiança; e nós amamos os homens dessa têmpera, e não desejamos outra coisa do que vê-los ilustres e recompensados”.

Pietro Maria Bardi, em sua História da arte brasileira, de 1975, sequer considera dignas de análise as pinturas de retratos e naturezas-mortas do século XIX. Contenta-se com a hierarquia do regime representativo da arte, eximindo-se de pensar os gêneros considerados menores. Já Rodrigo Naves, em A forma difícil, ao propor um esforço de compreensão da arte brasileira em sua especificidade, elege Debret como exemplo do desacerto entre o ideal iluminista que mobilizava a pintura de feitos virtuosos e a problemática realidade local – colônia escravocrata e de base rural e uma corte mal-ajambrada e pouco suntuosa para os padrões europeus. Ainda que Naves alerte para a maior relevância do olhar crítico sobre o historiográfico, a inadequação de modelos estéticos num dado contexto social não é suficiente para analisar parte importante da produção pictórica do século XIX, que fica ali elidida. O fato de eleger Debret como o caso exemplar da produção pré-moderna – indo dali direto para Guignard –, ainda que não intencionalmente, acaba por reforçar o sequestro da pintura brasileira do século XIX como produção a ser pensada em seus significados e paradoxos específicos.

Fonte: Suplemento Pernambuco.

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