Para não dizer que não falei da Copa

Foto: Divulgação FIFA

Por Mayara Bergamo, para Desacato.info.

Cada vez mais, tenho observado que a maneira como nos referimos a um assunto diz muito mais sobre nós do que sobre o assunto. Mostra nosso modo de pensar e de agir em sociedade, revela preconceitos conscientes e inconscientes, porque representa um conjunto de símbolos de poderes constituídos nesse e em outros momentos históricos, que infelizmente e apesar de alguns avanços importantes, ainda resistem.

Para o bem ou para o mal, temos o poder de recriar e subverter realidades através da escolha das palavras que falamos, escrevemos, divulgamos e repetimos à exaustão. No campo profissional essa disputa de narrativas é um assunto que sempre me interessou. No âmbito pessoal, não tenho problema em confessar que só prestei a devida atenção ao assunto quando me vi em conversas com militantes, principalmente os de movimentos negro, feminista e LGBTQI.

Para nós, que vivemos em um território racista, classista, machista, misógino e homofóbico o emprego adequado das palavras talvez seja a mais importante e eficaz forma de resistência e desconstrução na luta contra esses preconceitos e a favor da justiça, já que a esfera institucional também está repleta de agentes propagadores da ignorância.

No sentido da produção e reprodução simbólica podemos citar alguns exemplos, bastante diversos entre si, da perpetuação de poderes horripilantes também através do uso das palavras, afinal, foi Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista quem afirmou (e comprovou, por certo tempo) que uma mentira repetida mil vezes tem o poder de se tornar verdade.

Nesse sentido, quando nos referimos ao “descobrimento” do Brasil, por exemplo, supomos que esse amontoado de terras, riquezas naturais, belas paisagens, pluralidade de culturas, línguas, costumes e etnias não existia no período anterior a chegada dos portugueses. Pode parecer bobagem para muitos, mas essa escolha serve para reforçar a mentalidade colonial que nos foi imposta através de massacres, exploração e escravização de indígenas e do roubo.  

Da mesma maneira, se nos referimos aos milhões de negros e negras que foram sequestrados do continente Africano e arrastados a força para essas terras como “escravos”, limitamos a identidade dessas pessoas e de seus descendentes e fechamos os olhos para a violência, a exploração, as condições desumanas e as crueldades impostas a pessoas livres, muitas delas reis e rainhas, que foram raptadas, barbarizadas e escravizadas por outras pessoas.

Quando chamamos uma ocupação de “invasão”, quando dizemos que grevistas são “vagabundos” ou “baderneiros”, quando chamamos feministas de “feminazis” e quando reduzimos todas as lutas das minorias ou dos movimentos sociais ao “mimimi”, deslegitimamos as pautas e participamos ativamente na construção da narrativa dominante, símbolo do poder masculino, branco, rico e conservador que, invariavelmente, está contra tudo (e todos) que não o representa.  

…mas o que isso tem a ver com a Copa?

Essa semana veio à tona, primeiro nas redes sociais e depois na mídia, uma sequência perturbadora de notícias racistas, machistas, misóginas e homofóbicas vinculadas a torcedores brasileiros.

Primeiro foi um vídeo nauseante em que um grupo constrange, humilha, expõe e ri de uma mulher russa, fazendo ela repetir uma frase impublicável com alusão a cor de seu genital. Após esse episódio, outro vídeo com situação semelhante apareceu. Nele, um torcedor induz mulheres russas a expressarem um desejo sexual fantasioso. Como se não bastasse, outro torcedor brasileiro gravou uma situação em que humilha e ri de um menino, fazendo-o repetir frases depreciativas e de cunho sexual.

Se as palavras faladas, escritas e repetidas à exaustão podem mudar realidades, o que dizer das palavras gravadas? Do assédio e do desrespeito? Da humilhação pública? O que dizer disso tudo gravado e repetido à exaustão em um contexto em que as notícias se espalham facilmente e todo o mundo está assistindo? E quando essas palavras são associadas a imagem de alguém, podemos imaginar o tamanho do estrago?

Os torcedores que já foram identificados não podem servir para expiar problemas que são estruturais. No entanto, eles podem (e devem) responder criminalmente pelas gravações. Alguns devem enfrentar processos administrativos quando regressarem ao Brasil, outros, foram demitidos das funções que ocupavam. Em pronunciamentos, todos eles reclamam da exposição, culpam o álcool, falam sobre o “contexto de carnaval” em que estão inseridos e tratam o episódio com desdém, classificando a reação das mulheres brasileiras e russas como “uma tempestade em copo d’água” e “mimimi”. O que leva a crer que, para eles, esse comportamento não só é aceitável, como é repetido em outras ocasiões, no caso, sempre que há bebida ou algum tipo de celebração . Mas esse comportamento não é uma raridade. Vivemos em um dos países que mais objetifica e mata suas mulheres no mundo. A atitude desses homens reproduz o comportamento estrutural da sociedade que construímos. É um problema de todos e todas.

Após a publicação do primeiro vídeo, várias denúncias de assédio foram feitas. E não só pelas torcedoras. As poucas repórteres, produtoras, cinegrafistas e apresentadoras que foram a Rússia para cobrir a Copa do Mundo 2018, também estão passando por momentos constrangedores e humilhantes, tanto entre os colegas de profissão, quanto na rua.

Nesses episódios, algumas coisas me chamaram a atenção em particular:

  1. O fato de que são sempre homens, na maior parte das vezes em grupo, ridicularizando, constrangendo ou assediando mulheres e crianças. NUNCA outros homens;
  2. O caráter medíocre que os torcedores vestidos com a camiseta da CBF parecem estar internalizando. Primeiro, na Copa de 2014, quando desrespeitaram uma presidenta eleita democraticamente em plena abertura. Depois, durante o golpe de 2016 e agora na Copa de 2018, através dessas atitudes, no mínimo, lamentáveis;
  3. A carência das mulheres no quesito condições de trabalho, principalmente em ambientes majoritariamente masculinos, como grandes eventos esportivos, grandes empresas, governos com pouca representatividade, entre outros.      

A Copa mal começou e todos esses episódios já provam que, como mulheres e como sociedade, ainda temos muito a conquistar. Principalmente fora de campo.

Mayara Bergamo é fotógrafa e jornalista apaixonada pela cultura popular brasileira e pelo tripé literário formado por Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Pablo Neruda.

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