Para debater 1968, ano de todas as viradas

Por Oswaldo Goggiola.

Revolução iniciada — e ainda não concluída? Ou prenúncio do “capitalismo hedonista”? Começa em 6/6, na USP, o grande seminário sobre eventos que sacudiram o mundo e não se fecharam

“1968” possui até hoje um significado amplo, ambíguo e multifacetado. As interpretações todas coincidem em apontar sua natureza de matriz fundadora da contemporaneidade, qualquer que seja a denominação que esta receba. A partir daí começam as discordâncias: ele (ou ela) foi o início de uma revolução universal frustrada ou, no extremo diametralmente oposto, o evento que antecipou o hedonismo individualista “neoliberal”, joiussez sans entraves (gozar sem limites), fazendo referência exclusiva, e abusiva, ao maio francês como elemento não só central, mas também monopolicamente interpretativo, desse ano-símbolo. Marx, Freud et la Révolution Totale (de Pierre Fougeyrollas) e Pensamento 68 (de Luc Ferry) são obras que condensam essas interpretações polares. “Sob os paralelepípedos, a praia” fazia só referência à areia que apareceu quando o chão foi quebrado para remover pedras para atirar na polícia, ou apontava ao desejo de viver e gozar na praia que o tão francês “Club Mediterranée” — criado por veteranos do maio francês — recuperou lucrativamente nos anos sucessivos?

1968 não é só o símbolo de um processo, mas também de um evento, o evento-68 que condensa acontecimentos não exclusivos desse ano, que vão da Revolução Cultural chinesa (“iniciada” em 1966), até o cordobazo argentino (1969) ou a ascensão do governo de Salvador Allende no Chile (1970), passando pelo “outono quente” italiano (também 1969). O franco-centrismo de 1968, tão evidente (em primeiro lugar na grande mídia) em maio passado, não é, por outro lado, produto do acaso ou inteiramente arbitrário. Paris, “capital do século XIX” na famosa metáfora de Walter Benjamin, recuperou transitoriamente sua condição de caput (chefe) do mundo em 1968. O maio francês (pelo menos não só parisiense, quando é assim evocado) concentrou elementos que, noutras latitudes e eventos, apareceram dispersos ou só esboçados: o papel detonador do movimento estudantil, a participação (central, no momento álgido do confronto) da classe operária, destacada ou distinguida do conjunto das “classes populares”, o questionamento de todas as formas de vida (ou morte) social precedentes, o papel central do “desejo” (do quê? Essa era a questão), o forte apelo do anti-imperialismo e da luta anticolonial (Vietnã!), o questionamento do regime político. Em 22 de março, como se sabe, um grupo de estudantes que levantaram consignas anti-imperialistas, contra a guerra no Vietnã, em defesa da organização estudantil e por uma reforma universitária tomou a Universidade de Nanterre. Em 13 de maio, a greve geral começou na França, envolvendo 10 milhões de trabalhadores. Paris espirrou, a França contraiu um resfriado, e o mundo uma gripe.

É chover no molhado, mas não inútil, lembrar que 1968 foi o único evento da era contemporânea em que a mobilização social significativa (isto é, questionadora de fato da ordem social e política reinante) abrangeu todos os continentes, inclusive a esquecida (para o “fato 1968”) África, que testemunhou diversas mobilizações decisivas, em especial no Senegal (Dakar foi teatro de um confronto sem precedentes), hoje esquecidas, em parte propositalmente, pois os questionados nesses casos foram em grande parte governos pós-coloniais “progressistas” e até “de esquerda” (Léopold Sedar Senghor, no caso senegalês). 1968 foi um 1848 mundial? O paralelo histórico é, talvez, o primeiro passo de uma tentativa, se não de “compreensão”, pelo menos de medição.

1968 abriu uma nova era, já antecipada nos anos imediatamente precedentes em todos os âmbitos da vida. Qual era? Essa é a primeira pergunta. Uma era já concluída? Essa é a segunda. “1968 já concluiu” disse Nicolas Sarkozy na campanha eleitoral que o elegeu presidente da França (esquecendo que Daniel Cohn-Bendit fora um dos deputados mais votados para o Parlamento Europeu); “1968 acabou”, lhe fez coro Alain Krivine, um dos dirigentes do maio estudantil francês, por ocasião do 50º aniversário. Acabou mesmo? E, o que exatamente acabou? Como lembrou Patrick Viveret, protagonista do levantamento de Nanterre, “1968 não é somente o 68 francês, é, sobretudo, uma fratura cultural mundial – de leste a oeste e de norte ao sul. Ela será também a primavera de Praga, Berkeley, a luta contra a guerra do Vietnã, o movimento hippie. E o 68 francês, mesmo que tenha adquirido uma relativa importância em relação aos outros, deve estar sempre ligado a essa fratura mundial. Maio de 68 é, portanto, uma vitória inacabada, que não tem linguagem para ser expresso, que não tem uma forma política verdadeira. Alguns anos depois, aquilo que vai se denominar movimento autogestionário tentará encontrar uma linguagem política. Mas em 68, mesmo, isso não existe”.

E 1968 não foi só “de esquerda”; no Brasil, foi o ano da “passeata do 100 mil”, mas também do AI-5, que “fechou” a ditadura militar (ou cívico-empresarial-militar) e inaugurou um período de trevas, de prisões, desparecimentos, torturas e exílios que, ao molho do 1968 mundial, acabaram voltando ao Brasil na forma de questionamentos só um pouquinho tardios da cultura e do cotidiano defendidos na “Marcha por Deus, a Família e a Liberdade” (também de 1968, tanto quanto os assassinatos de Martin Luther King ou de Robert Kennedy nos EUA); pense-se nos “retornos” de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Fernando Gabeira e até do “irmão de Henfil”.

Um centro acadêmico consagrado ao estudo da história (História?) só pode abordar o evento-processo-estrutura 1968 em suas múltiplas dimensões espaciais, temporais e interpretativas. É o que tentaremos no Simpósio Internacional “Cinquenta anos de 1968: a era de todas as viradas”, a ser realizado no Departamento de História (FFLCH) da Universidade de São Paulo, entre 6 e 8 de junho próximos. O simpósio terá 75 mesas redondas, e bem mais de duzentos participantes, estudiosos, testemunhas ou mesmo participantes dos acontecimentos desses anos, oriundos das mais diversas áreas de conhecimento ou atuação político-social. Ele será completamente aberto ao público, com entrada franca, no Prédio de História e Geografia da Cidade Universitária do Butantã. Nomear alguns dos participantes seria não fazer justiça a outros e ceder ao “estrelismo” que 1968 tentou arrancar de raiz.

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