Para conhecer: o Exército Zapatista de Libertação Nacional

Por Gustavo Henrique de Siqueira.

O EZLN (Ejército Zapatista de Liberación Nacional) se constitui como um dos maiores movimentos sociais do mundo. Nasceu da união de militantes das FLN (Fuerzas de Liberación Nacional) com os camponeses e indígenas do estado de Chiapas, no sul do México, depois dos militantes abandonarem a luta política convencidos da impossibilidade de conquistar melhoras sociais frente à força do PRI (Partido Revolucionario Institucional). Vem atuando desde 1994 e administrando cidades autônomas, assuntos que abordarei com mais detalhes adiante.

Origens

Desde a “descoberta” da América os indígenas passaram por diversos processos de cooptação do Estado. Na ditadura liberal de Porfírio Díaz (1877-1910), a pátria mexicana sofreu um amplo desenvolvimento capitalista através do sistema agro exportador com o implante de estradas de ferro e o escoamento das riquezas para o exterior. Os autores Bartra e Otero afirmam que “luego de las leyes de la reforma liberal y durante el Porfiriato, las comunidades indígenas fueron privadas del 90% de sus tierras”. (Batra y Otero, 2008: 04). No estado de Morelos, centro do México, este seria o principal motivo que levou a Emiliano Zapata e seus companheiros a levantarem-se contra o governo ditatorial. A luta de Zapata viria a gerar no dia 28 de novembro de 1911 o Plano Ayala, que consistia num corpo de artigos com as reivindicações dos indígenas e camponeses. Este plano foi muito importante e serviu como bandeira da luta zapatista por reforma agrária. Não obstante, hoje poderíamos afirmar que o plano só peca no fato de desconsiderar a complexidade do povo oprimido do México, onde, para além da classe camponesa e indígena, milhares de operários sofriam com o modelo econômico e político do porfiriato. Este fato, unido à inexperiência prática de governo de Zapata e Francisco “Pancho” Villa, deixou o caminho livre para o político de origens burguesas, Francisco Madero, governar a pátria revolucionária e dar continuidade a algumas práticas oligarcas. Não é propósito de este artigo avaliar a Revolução Mexicana (1910-1917) para além da contextualização da luta camponesa, por isso a importância da revolução vai se limitar, neste momento, ao nascimento do zapatismo.

O Artigo 27 da Constituição mexicana, feito no pós-revolução, garantia a reforma agrária aos povos desapropriados, mas a última grande distribuição neste campo só se deu no governo de Lázaro Cárdenas (1930-1940). Depois dele, a história mexicana mostra que ninguém mais o fez de maneira significativa. Para os indígenas e camponeses, especificamente, o golpe mais duro aconteceu no governo de Carlos Salinas de Gortari (1988-1994), que modifica o artigo, e retira o direito de acesso a terra, uma das principais conquistas da Revolução. Impossibilitados de reivindicar por vias legais, os indígenas preparam o terreno, junto às FLN, para combater em armas.

As FLN foram fundadas em agosto de 1969 e, segundo Magno de Carvalho, membro da direção da FASUBRA (Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Públicas Brasileiras), seu objetivo era “unir a luta do proletariado urbano aos camponeses e indígenas” (Carvalho, 1996). Além disso, como afirmou Marcos,

“O grupo urbano era pequeno, de orientação marxista-leninista, formado por gente de classe média que viu fechar suas alternativas políticas pelo monopólio do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Era uma organização clandestina que procurava crescer com trabalho político, sabendo que um dia iria aderir à luta armada. Como precisava de um lugar para se preparar militarmente, entrou em contato com indígenas de Chiapas que também haviam concluído que a via pacífica havia se esgotado. Da convergência de interesses surgiu o EZLN, em novembro de 1983” (Marcos, 1996: 41).

O EZLN

A primeira aparição pública do EZLN foi ao dia 1º de janeiro de 1994, no contexto da assinatura do NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) pelo governo mexicano no final de 93 (Van Der Haar, 2005: 05). Os zapatistas invadiram e tomaram seis cidades de Chiapas, incluindo a capital, San Cristóbal de Las Casas, com mais de 100 mil habitantes. A resposta do Exército Federal foi a repressão, o que causou a dispersão dos insurgentes para a Selva Lacandona, lugar de difícil acesso para os Federais, e onde reside o movimento até hoje.

O EZLN começou como um movimento misto de forças insurgentes, mas com o tempo converteu-se majoritariamente em força indígena, tanto no exército quando nas bases populares. Segundo Carvalho, as quatro etnias indígenas presentes no movimento são de tzotziles (aproximadamente 85.553 índios), tzetales (95.953), tojolabales (12.660) y choles (47.529) (Carvalho, 1996).

Os manifestos em que se apóiam os neo-zapatistas são as Declaraciones de La Selva Lacandona. Os reclamos destas declarações são a terra, liberdade, trabalho, independência, saúde, educação, alimentação, justiça e paz. Além disso, apresenta um plano de distribuição de terra através da Ley Agraria Revolucionaria. Desde 1994 até hoje foram seis declarações assinadas pelo Subcomandante Marcos e outros líderes insurgentes. Estas declarações, diferentemente do Plano Ayala, se apresentam mais dinâmicas frente à complexidade social de Chiapas e dos estados vizinhos.

Depois do avanço dos zapatistas, o governo negocia um acordo de paz com as forças rebeldes. Neste momento, meados de 1996, o Exército Zapatista e suas bases sofrem muitas baixas por causa das propostas de cooptação do estado, oferecendo terras, dinheiro, moradia, cabeças de gado e etc. aos “desertores” do movimento. No entanto, a resistência zapatista persistiu e os rebeldes se mantiveram em armas.

As negociações do EZLN com o governo mexicano se intensificam na medida em que os zapatistas se recusam a devolver as terras tomadas de grandes proprietários no levante de 1994. Frente a esta situação, o governo lança um projeto de facilitação de crédito a estes donos de terras para aquisição de novas propriedades. Assim,

“Los créditos FIAPAR cubrieron unas 46000 hectáreas, o sea más de las dos terceras partes de las tierras que se estima controla el EZLN. La cuestión de las tierras en manos zapatistas estaba programada para tratarse en una de las mesas de diálogo posteriores a la de San Andrés (sobre derechos y cultura indígena). Sin embargo, desde que el EZLN se retiró de las negociaciones de paz, en 1997, la cuestión ha quedado pendiente.” (Van Der Haar, 2005: 07).

Os acordos assinados entre a COCOPA (Comisión por La Concordia y Pacificación) e o EZLN asseguram uma série de direitos para os indígenas, tais como:

“La organización política y social, la elección de autoridades locales, la administración de justicia, la tenencia de la tierra y el manejo de recursos naturales, y el desarrollo cultural. Los Acuerdos reconocen las comunidades indígenas como entidades de derecho público y permiten la re-municipalización en municipios con población indígena.” (Van Der Haar, 2005: 10)

Os Acuerdos são muito importantes para despertar a esperança de paz nos povos zapatistas. Todavia, no plano prático não sai como o planejado por causa da pressão do estado em favor de proprietários “lesados” pela perda de terras agora sob domínio indígena. Apesar da resistência, muitos integrantes das bases zapatistas não seguiram lutando por pensar que essa fosse a única chance e legalizar terras conquistadas.

Os municípios autônomos

O EZLN, ao desistir da luta pelas vias legais, começa um plano de governo próprio e independente em seus territórios, que se chamaram “municípios autônomos” ou “rebeldes”. Estas localidades são consideradas “inconstitucionais” pelo governador de Chiapas. O presidente Vicente Fox, por sua vez, as incluiu nos Acuerdos, que protegiam a organização própria das comunidades indígenas, acarretando em protestos pela esquerda mexicana que acusa o presidente de fazer pouco caso frente a um problema que se apresenta muito complexo e urgente (Van Der Haar, 2005: 15). Ao contrário do que poderia imaginar o governo neste momento, o movimento não perde força e logra receber apoio estrangeiro de várias organizações do mundo, simpáticas à causa zapatista.

No verão de 2003, os insurgentes inauguram as Juntas de Buen Gobierno que visam administrar os municípios sob controle dos rebeldes. A administração consiste em resolver conflitos que possam ocorrer entre os municípios, além de distribuir as rendas provenientes de doações e etc. entre os municípios. A descentralização das JBG acontece através dos Caracoles, sede dos governos autônomos (Spinelli, 2009: 10). A distribuição dos municípios entre as Juntas e Caracoles pode ser conferida na tabela a seguir:

Fonte: Hidalgo, Onésimo y Castro Soto, Gustavo. Cambios en el EZLN. CIEPAC, 2003.

É importante destacar que os municípios rebeldes independem e não se sujeitam à influência dos municípios oficiais. As terras são manejadas coletivamente e o mantimento das comunidades se da através de produtos para subsistência. A educação é garantida pelas escolas rebeldes, dedicadas ao ensino e proliferação da consciência política às crianças. No campo criminal, o EZLN cuida para que os responsáveis por delitos sejam punidos através de trabalhos voltados para o bem comum. A parte jurídica e organizativa fica por conta das assembléias democráticas, antes gerenciadas pelo Exército, mas agora com caráter popular. O Exército assume, estritamente, a função militar da comunidade.

O líder e porta-voz do EZLN, Subcomandante Marcos, é o responsável pelas declarações públicas do movimento. Sempre enfatizando a importância da construção de um governo honesto e democrático, Marcos foi uma das lideranças das FLN antes de juntar-se aos povos de Chiapas. O governo diz reconhecer Marcos pela identidade de Rafael Sebastián Guillén Vicente, e afirma que o líder é formado em Filosofia pela UNAM (Universidad Nacional Autónoma de Mexico). Filho de imigrantes espanhóis e desde cedo ajudando seu pai no comércio de móveis, o Subcomandante logo deixou a “vida comum” para abraçar a causa contra a opressão governamental às classes subalternas. Dentro do EZLN, Marcos crê na difusão do movimento para outras regiões e povos do mundo, especialmente da América Latina, apesar de outras lideranças zapatistas desejarem apenas consolidarem-se no campo nacional mexicano (Bartra, Armando; Otero, Gerardo, 2008: 24).

Conclusão

A estratégia dos MAREZ (Municipios Autónomos Rebeldes Zapatistas) foi interpretada por intelectuais como uma afronta ao governo sem atacá-lo. Contrariando a teoria leninista de que a revolução deve ser feita por meio da tomada de poder do Estado e seus aparatos burgueses para aplicá-las em benefício da classe proletária, o que acontece em Chiapas é uma resistência de organizações independentes e anticapitalistas sem apropriar-se dos mecanismos Federais do Estado (Spinelli, 2009: 11). A dinâmica do estado de Chiapas, segundo Spinelli, é de um “poder dual” onde o governo Federal controla uma parte do estado e o EZLN outra. No fim das contas e apesar das dificuldades sofridas pela fome e constante vigília do Exército Federal Mexicano, os municípios autônomos mostram na prática que é possível construir um modelo alternativo de sociedade, mesmo dentro de um estado sob regime capitalista. Deixa para nós um exemplo. Algo que nós, latino-americanos, deveríamos observar com olhar crítico e solidário.

Bibliografía

BARTRA, Armando; OTERO, Gerardo. Movimientos indígenas campesinos en México: la lucha por la tierra, la autonomía y la democracia. En publicación: Recuperando la tierra. El resurgimiento de movimientos rurales en África, Asia y América Latina. Sam Moyo y Paris Yeros [coord.]. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 2008.

CARVALHO, Magno de. O EZLN e a luta armada em Chiapas. In: Olho da História nº 3, UFBA (Universidade Federal da Bahia), dezembro de 1996. Disponible en http://www.oolhodahistoria.ufba.br/03carval.html

COSIO VILLEGAS, Daniel. Historia mínima de México. México: El Colegio de México, 1973.

HIDALGO, Onésimo y CASTRO SOTO, Gustavo. Cambios en el EZLN. CIEPAC, 2003.

MARCOS (entrevista de Pedro Ortiz). “YA Basta” in Revista Atenção. São Paulo, ano 2, n. 8, 1996.

SPINELLI, L. G.; Os Municípios Autônomos de Chiapas e o lugar do poder no movimento neozapatista – reflexões sobre a superação do Estado, 09/2009, Cadernos Cemarx,Vol. 5, pp.181-194, Campinas, SP, Brasil, 2009

VAN DER HAAR, Gemma (2005). El Movimiento zapatista de Chiapas: Dimensiones de su lucha. En Revista: Labours Again Publications. International Institute of Social History, Amsterdam, Holanda. Julio de 2005.

 

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