Ouvidoria aponta excesso da polícia em 74% dos casos de mortes em SP

Levantamento traz dados de letalidade e vitimização policial do ano passado: ouvidor considera grave os 26 suicídios de agentes e os 940 mortos pela polícia, recorde depois de 1992

Depois de uma operação realizada pela PM, rapaz de 18 anos foi morto por agentes que participaram da operação. Os moradores da Favela tentaram realizar um protesto | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

Por Maria Teresa Cruz.

Um levantamento realizado pela Ouvidoria das polícias de São Paulo aponta que houve excesso em 74% dos 756 casos de morte em decorrência de ação policial analisados. A polícia matou 940 pessoas no ano passado, número que só perde para 1992, quando houve 1.470 mortes, período em que houve o massacre do Carandiru, e o estudo conseguiu fazer uma base de dados próxima dos 80%.

O estudo intitulado “Pesquisa sobre o uso da força letal por policiais de São Paulo e vitimização Policial” também mostra que, nos casos em que houve excesso, em 26% não houve sequer indícios de conflito armado, excluindo a hipótese comumente usada para justificar legítima defesa. O mês mais letal foi outubro, quando foram registradas 93 mortes.

Mesmo quando houve o confronto armado, verificado em 46% das ocorrências, ainda assim houve excesso da força e a verificação de desrespeito a pelo menos duas condutas previstas no Método Giraldi, pelo qual é treinada a Polícia Militar de São Paulo: proporcionalidade – que indica que a força da resposta deve ser condizente à agressão – e qualidade – a atuação policial propriamente dita. O método é baseado na ideia de preservação à vida e foi criado em 1998 por causa do massacre da favela Naval, com o intuito de reduzir a violência policial. Para o ouvidor das polícias, Benedito Mariano, existe uma falha no entendimento do conceito. “Trabalhamos com a hipótese de que o método não foi bem difundido. Houve redução nas mortes de policiais, mas a letalidade, que deveria ter diminuído também, cresceu”, analisou.

O levantamento apontou que a média de perfurações em vítimas que foram mortas por arma de fogo em ação da polícia é de 3 disparos. Em 43% dos casos havia marcas de tiro nas costas e na cabeça, o que pode ser uma indicação de execução. “Eu faço uma avaliação que existe uma cultura que não é de hoje, é histórica, de que a polícia trabalha muito mais no flagrante do que na prevenção. A polícia precisava chegar antes do delito”, explica o ouvidor.

Outra constatação é que os homens negros e periféricos continuam sendo as maiores vítimas da violência de Estado. Dos 124 mortos de até 17 anos, 70% eram negros. Na faixa etária de 18 a 25, 68% eram negros. A baixa escolaridade também é um indicador dessa vulnerabilidade: 76% só chegaram até o ensino fundamental e 99% não fizeram curso superior. Do total de vítimas, 46% não tinham antecedentes criminais.

Para Benedito Mariano, o senso comum e o preconceito não podem pautar a atuação policial. “Esse recorte é cultural, histórico. A nossa polícia ainda carrega uma questão de preconceito com a população negra e pobre e isso precisa ser modificado. Por isso, estamos propondo uma disciplina na formação da PM e civil sobre discriminação racial e estereótipo de marginal. O estereótipo do criminoso e o que o senso comum apregoa é um estereótipo que direta ou indiretamente reforça a violência contra pobres e negros”, explicou.

Questionado sobre a fala do comandante da Rota, Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, em entrevista ao UOL no ano passado, de que há uma diferença na abordagem nos Jardins e nas periferias, Mariano disse que “o próprio comandante sabe que cometeu um equívoco”.

Um dos casos que o ouvidor citou como emblemático foi o da morte do carroceiro Ricardo Silva Nascimento, o Negão, em julho do ano passado. Para ele, houve falha na avaliação da cena como perigosa – já que o carroceiro estava com um pedaço de pau de menos de 40 centímetros. Sobre isso, Benedito sugere que a polícia comece a “pensar no uso de armamento não letal nesses casos, como a pistola de condutividade elétrica”.

Segundo o Major Luis Fernando Alves, que trabalha com o comandante da PM paulista e é instrutor do método Giraldi, muitas vezes essa falha de avaliação na cena decorre do fato de que o policial tem segundos para decidir o que fazer. “A pesquisa mostra que a maior parte das ocorrências acontece no período noturno. Há simulacros de armas, o policial tem frações de segundo para decidir entre a morte e a vida dele, explica.

Na pesquisa há um ranking dos batalhões mais letais: os três primeiros são na capital paulista – 41º (Santo André, na Grande São Paulo), 16º (Campo Limpo, zona sul) e 18º (Brasilândia, zona norte) – e o quarto é o 39º BPM, na baixada santista.

Para Benedito Mariano, é preciso mudar a mentalidade na formação de policiais, principalmente os militares, que, até pelas características de atuação, são os responsáveis por mais de 90% das ocorrências que resultam em morte. “O método deveria ter diminuído tanto a letalidade quanto a vitimização de policiais. O que vimos é que a morte de policiais em serviço é baixa [foram 3 mortes em serviço de PMs e 3 de civis no ano passado], mas a letalidade não. Faltou trabalhar a filosofia do método [de preservação da vida]: de uma cultura de morte importada das forças armadas, para uma cultura de verbalização, de uma cultura onde tudo é resolvido no tiro e bomba, para uma cultura de negociação, de uma cultura de disparar em atitude suspeita, para uma cultura de disparar como ultima alternativa”, ponderou.

Com relação ao registro de ocorrências, o levantamento aponta que na maioria dos casos de mortos pela polícia (67%), a única versão era a dos PMs envolvidos. “A ausência de testemunhas civis foi verificada, sobretudo, nos episódios ocorridos no período noturno e em locais ermos, o que prejudica uma análise que considere outros pontos de vista em relação aos fatos”, diz o relatório. A ausência de informações mais consistentes dos policiais envolvidos na ocorrência – como o batalhão a que pertencem – foi apontada como falha pela ouvidoria.

Outro ponto a ser destacado é a desmistificação da ideia de que bandidos estão mais bem armados que a polícia, que, por sua vez, mata em confronto por essa razão. No levantamento, apenas 7 ocorrências em todo o ano passado tiveram ligação com crime organizado, onde foram apreendidos armamentos pesados como metralhadoras e fuzis. Das armas apreendidas com cidadão comuns envolvidos em ocorrências policiais, 75% eram revólveres calibre 38 e 32.

Quando o policial é a vítima

Na parte da pesquisa dedicada à vitimização, o ouvidor das polícias, Benedito Mariano, destaca os casos de suicídio, proporcionalmente maior entre policiais civis: foram 26 casos, sendo 16 PMs e 10 policiais civis. No documento, há citação de uma declaração do coronel da PM Íbis Pereira, ex-comandante da Polícia Militar do Rio, que afirma que “a polícia passa por um processo de desumanização. Neste processo, ou você embrutece ou enlouquece”. Para Mariano, é urgente o aumento de rede de apoio psicológico para as duas corporações.

“O suicídio vitima 3 vezes mais os policiais do que o trabalho em si na rua. É um fenômeno grave e precisa ser priorizado pelos comandos da polícia”, explicou Mariano, que afirmou não ter, na pesquisa, as possíveis motivações para isso. “O que reconhecemos é que a base da polícia é muito mal remunerada. Isso influi no estresse? Com certeza. O policial acaba tendo que fazer trabalho extra”.

As mortes de agentes fora do serviço ainda são a maioria: de cada 10 policiais mortos, 9 estavam de folga. Foram vítimas de homicídio durante a folga no ano passado 46 policiais (militares e civis). A Corregedoria aponta que a morte em ‘bicos’ (atividade extra para complementar renda feita por policiais militares) é bastante comum.

Ao final, o ouvidor apresentou 14 recomendações feitas a partir dos dados para tentar corrigir as falhas na conduta policial e também na proteção do agente, entre eles o fortalecimento do Método Giraldi, aumento da base salarial da polícia para mais de R$ 4 mil e aumento da polícia técnico-científica e Polícia Civil. Cabe lembrar que, em agosto no ano passado, a Ponte publicou uma reportagem em que o delegado-adjunto em exercício Waldir Covino chegou a criticar o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, por causa de cortes de verba na polícia civil. Em grupos de Whatsapp, chegou a dizer que a polícia “está sem dinheiro e que delegados não são ‘irresponsáveis, mentirosos, moleques’”.

A Ponte procurou a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), através da assessoria privada feita pela InPress, para comentar os resultados do levantamento. Em nota, a pasta criticou alguns aspectos da pesquisa, como por exemplo, a inclusão de ocorrências policiais com agentes em serviço ou de folga. “O correto é mantê-los separados, já que possuem dinâmica e políticas de redução completamente diferentes. Também é incorreto fazer estudo analítico sem levar em conta todos aspectos de cada caso que é acompanhado, monitorado e investigado para constatar se a ação policial foi realmente legítima”, afirma a SSP, que aponta ainda, que as ocorrências envolvendo agentes em folga caíram 33,07% no primeiro semestre deste ano, em comparação com igual período de 2017.

“Entre as ações para redução da letalidade policial o Estado conta com a Resolução SSP 40/15, que garante maior eficácia nas investigações de mortes. Outra medida importante é o Programa de Acompanhamento e Apoio ao PM (PAAPM), que oferece suporte ao policial, além de receber policiais que solicitam apoio no Sistema de Saúde Mental (SisMen) da PM, composto também pelo Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS) e pelos Núcleos de Atenção Psicológica e Social (NAPS), nos comandos regionais”, conclui a nota.

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