Os R$ 600 e a brecha em meio ao pesadelo

Ao propor o corte do Auxílio Emergencial pela metade, Bolsonaro abre à esquerda uma chance preciosa de mobilização e educação política. As eleições municipais podem ampliá-la. Mas nada garante, no momento, que será aproveitada

Imagem ilustrativa de Frantisek Krejci por Pixabay .

Por Antonio Martins.

Capturar o sentimento antissistema é um estrategema central da ultradireita – e o Brasil assiste, desde março, a um episódio clássico. O governo Bolsonaro não desejava o Auxílio Emergencial de R$ 600 – aprovado graças a uma articulação da Rede Brasileira de Renda Básica, que atuou em sintonia com a oposição parlamentar. Mas o presidente percebeu, desde o primeiro momento, que não poderia contrapor-se à proposta – e tinha uma chance de se apropriar dela. Conseguiu fazê-lo com maestria até o momento, auxiliado em boa medida pela modorrência e rigidez política dos partidos de esquerda, que perderam todas as oportunidades de disputá-la. A aprovação de Bolsonaro cresceu e ele ameaça penetrar em territórios políticos antes hostis, aproveitando as eleições de novembro para capilarizar sua influência. As contradições inerentes a seu projeto acabam de gerar, porém um antídoto.

Ele apareceu nesta terça-feira, quando o presidente, depois de reunir-se com os expoentes máximos da “velha política”, anunciou uma proposta ambígua para a continuidade do Auxílio Emergencial. O pagamento de R$ 600 a 70 milhões de brasileiros prosseguirá até o fim do ano – mas será reduzido pela metade. É um corte dramático, em meio à pandemia e à devastação econômica e social, mas os compromissos do governo o impediram de ir mais longe. Bolsonaro sabe que o benefício tornou-se a pilastra central de seu apoio entre o eleitorado. Mas sua sustentação política depende de forças mais poderosas – e estas querem restringir ao máximo o gasto social. Por isso, a foto do anúncio de terça-feira é emblemática. Ao falar aos microfones, Bolsonaro está escoltado pelos líderes do Centrão e tem, à sua direita, Paulo Guedes. O ministro, fiador dos interesses da oligarquia financeira junto ao governo, interrompe-o e o corrige, quando necessário…

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Para enxergar a brecha que se abre à esquerda é preciso examinar o contexto mais amplo desta cena. A economia está a nocaute, como demonstram os dados do IBGE que registraram, no segundo trimestre do ano, retração de 9,7% – a maior em todos os tempos. Mas os números internos da pesquisa são ainda mais impressionantes. Três dos quatro motores que mantêm o voo da economia estão em chamas, ou paralisados. O investimento despencou 15,4% no trimestre e acumula uma queda de espantosos 37,3%, em relação ao segundo trimestre de 2013. O consumo das famílias está deprimido (- 12,5%) pelo desemprego ou pela contenção os gastos, diante das perspectivas sombrias à frente. As próprias exportações recuam, e além disso concentram-se em setores como o agronegócio e a mineração, incapazes de injetar dinheiro no conjunto a economia. Restariam, para evitar o desastre, os gastos do governo.

Mas são exatamente eles que a oligarquia financeira recusa-se a elevar – pois não tolera que as sociedades e os Estados livrem-se do controle que ela própria exerce sobre o dinheiro. Foi por isso que subitamente voltou à tona o discurso da “disciplina fiscal”; que os R$ 600 encolheram pela metade; que na proposta de Orçamento enviada pelo governo ao Congresso há cortes até na Saúde (em meio à pandemia!) e Educação (após um ano perdido, por dezenas de milhares de estudantes); que o Congresso, sob direção neoliberal, põe em pauta, além da “Reforma Administrativa” as Emendas Constitucionais que oprimem os gastos de Estados e Municípios.

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Nas políticas redistributivas; no Público; no Comum está agora, portanto, a chave para salvar tanto as vidas quanto as ocupações e a economia. Os R$ 600 têm enorme potência simbólica. Por meio deles, 70 milhões de brasileiros mantiveram-se minimamente à tona. Sem eles, reconhecem todas as análises, teria havido uma hecatombe produtiva. E ainda assim, o governo quer podá-los…

Faltam a toda a esquerda – ao contrário da ultradireita – um sentido e um mote político para as eleições de novembro. Com raras e notáveis exceções (Belém e Porto Alegre são, provavelmente, os casos mais relevantes), os partidos foram incapazes de perceber o que está em jogo. Dividiram-se. Preferiram refugiar-se em seus interesses particulares. Um eleitor médio saberá dizer, em qualquer ponto do país, o que o bolsonarismo almeja como projeto. Este mesmo personagem será incapaz de enxergar o que querem os partidos progressistas – atônitos, fragmentados em cada cidade e sem nenhuma mensagem comum.

Mas a política é feita, como a vida, também de acaso e surpresa. A brecha aberta pelo bolsonarismo e suas contradições não pode ser desperdiçada. Ela permite dialogar com 70 milhões, que enxergaram a potência da redistribuição – mesmo quando tão modesta. Ela estimula a levantar a proposta da manutenção integral dos R$ 600, e de seu prolongamento indefinido (ao invés de terminar em dezembro, como quer o governo) – para que se torne um embrião de Renda Básica Universal. Ela abre uma avenida para propor, a partir deste ponto de apoio, um vasto feixe de políticas, com incidência direta nos municípios.

A ampliação dos investimentos no SUS, agora revalorizado e totalmente dependente das políticas das prefeituras. A garantia de Habitação Digna, ainda mais crucial quando a crise sanitária e econômica empurra famílias desamparadas a formar novas favelas. A transformação urbana das periferias, que exige amplo investimento e pode gerar milhões de ocupações. A garantia do direito ao Saneamento. A despoluição dos rios. A construção de redes eficazes de transporte coletivo. A garantia de condições seguras e dignas para o reinício das aulas – ótimo estopim para deflagrar uma reflexão sobre o Ensino Público de excelência de que precisamos. Inúmeros outros exemplos.

Há muito falta à esquerda uma visão de mundo e de país, capaz de oferecer à sociedade um horizonte distinto aos neoliberalismo e da ultradireita. A crise do projeto lulista, que é anterior ao golpe de 2016, jamais foi enfrentada. Por isso, é tão ineficaz a tentativa de responder aos desafios da conjuntura aos gritos de “Lula Livre” ou de “Fora Bolsonaro”. Mas a pandemia, que trouxe um séquito de horrores, reavivou por oposição as ideias do Comum, do Cuidado, do Compartilhamento, da Colaboração. Elas, que se opõem tão claramente à exaltação do individualismo ou do ódio, são a base a partir do qual terá de se erguer o novo.

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Na madrugada desta quinta-feira (3/9), o Palácio do Planalto formalizou sua proposta para o Auxílio Emergencial. Vem sob o título simbólico de Medida Provisória nº 1000. É evidente que o governo tentará explorá-la, já no 7 de Setembro. Mas até esta data emblemática há quatro longos dias.

É tempo mais que suficiente para tramar, por exemplo, uma resposta marcante. Imagine que, a partir de um chamado de organizações da sociedade civil, se lance, nesta data, uma proposta de alternativa. Deveria ser muito simples, tanto para construir unidade quanto para marcar claramente as diferenças com o governo. Mantém-se o valor de R$ 600. E elimina-se o limite de 31 de dezembro, transformando o Auxílio Emergencial numa proto-Renda Básica.

A partir do protagonismo social, convidam-se os partidos políticos. Imagine um ato de lançamento que conte, também, com a presença (em ordem alfabética…) de Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Lídice da Mata, Lula, Manuela Dávila, Marina Silva, Roberto Requião. Seria, ou não, um fato político novo e marcante? Sinalizaria, ou não, às vésperas do início do processo eleitoral, uma mudança de ares?

Da série de revezes das forças democráticas emerge, às vezes, a impressão de que a ultradireita é imbatível. Trata-se uma visão distorcida. O que os fatos demonstram, em todo o mundo, é uma crise profunda do antigo centro político – o que abre espaço tanto para retrocessos gravíssimos quanto para grandes desafios ao sistema. No Brasil, só um campo político aproveitou, até o momento, esta brecha. Está na hora de o outro começar a se mexer.

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