Os movimentos sociais como uma força propulsora do desenvolvimento, da cidadania e da solidariedade

A paralisação no dia 28 é organizada por oitos centrais sindicais, frentes de esquerda e movimentos sociais e populares. / Lilian Campelo
Foto: Lilian Campelo

Por Francisco Comaru.

A quem pode interessar a criminalização dos movimentos sociais, da solidariedade e das iniciativas associativas em prol da cidadania?

Após a conclusão dos estudos em engenharia civil no Instituto Mauá de Tecnologia em 1992, fui cursar mestrado na Escola Politécnica da USP e me deparei com um mundo completamente novo e estimulante. Estávamos em 1993 e a Gestão da prefeita Luiza Erundina havia apenas terminado. Sob a autoritária gestão Paulo Maluf inúmeros participantes da produção de dezenas de milhares de unidades habitacionais pelo sistema de mutirão e autogestão realizavam debates importantes principalmente na FAUUSP sobre aquela experiência incrível e que marcaria a nossa história.

Um professor da Escola Politécnica da USP concluía o seu mestrado naquele ano e demonstrava que a produção pelo sistema associativo e organizativo dos mutirões permitiu a redução de custos de até 30% quando comparados com a produção convencional por empreiteiras. Além disso, a gestão dos projetos e obras pela Associação dos Moradores e por engenheiros e arquitetos das Assessorias Técnicas resultava unidades habitacionais mais bem localizadas e com melhor qualidade arquitetônica e construtiva. O mais relevante porém se assentava nos resultados imateriais da experiência. Aquelas massas populares, boa parte, amorfas das periferias (e dos cortiços dos centros) iniciavam a debater os problemas da habitação, dos bairros, da cidade, os problemas de educação, saúde, cultura e segurança, para além da pauta do jornal televisivo ou de clichês da tradicional e conservadora novela da televisão brasileira.

Naquele ano fui convidado a atuar como integrante de uma assessoria técnica aos movimentos populares, a AD, Ação Direta. Pude presenciar milhares de famílias, a maioria chefiada por mulheres, e com muitas crianças, engajando-se e alcançando níveis de cidadania mais elevados por meio do processo complexo e trabalhoso de organização e luta pacífica pela construção da própria moradia, com a participação de jovens em grupos de capoeira, música e teatro, projetos de geração de renda como padarias comunitárias, ampliação dos grupos de solidariedade e apoio mútuo no seio das famílias mais pobres e vulneráveis.

Paralelamente a isso, desde as últimas décadas até hoje muitas pesquisas revelam como os inúmeros assentados da Reforma Agraria produzem alimentos livres de agrotóxicos a preços acessíveis, empregando milhares de famílias que podem se fixar no campo, contribuindo para a disseminação das técnicas avançadas da agroecologia e da sustentabilidade ambiental, social, econômica e do uso da terra neste território imenso que é o Brasil não urbano. Segundo fontes do governo federal, o agricultor familiar produz cerca de 70% dos alimentos que compõem a cesta básica da família brasileira.

Grupos que resgatam a cultura popular, a história e a memória do nosso país formam movimentos identitários em torno de temas centrais da sociedade brasileira como as questões dos negros, afrobrasileiros, quilombolas, das mulheres, crianças, jovens, estudantes, idosos, indígenas, caiçaras, ribeirinhos, pessoas com deficiência, LGBTT entre muitos outros.

As ocupações de prédios abandonados dos centros metropolitanos, por sua vez, organizadas por meio dos movimentos viabilizam abrigo permanente ou provisório para milhares de famílias sem-teto de baixíssima renda, dando função social a esses imóveis, em sintonia com o que define a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade. Nos últimos 25 anos visitando, pesquisando e orientando pesquisas de iniciação cientifica, mestrado e doutorado tenho testemunhado que milhares de famílias de ocupações urbanas estariam sem condições de sobreviver na cidade, não fosse pela “alternativa criativa” fruto de muito trabalho, de transformar espaços abandonados em “espaços vivos” para as famílias igualmente abandonadas da nossa sociedade. Esses territórios, além do abrigo essencial para a vida, comportam geração de renda, exposições de arte, debates acadêmicos, produção de alimentos e refeições, cafés filosóficos, cenários e ingredientes de longas e curtas metragens, formação e capacitação para o mundo do trabalho e o mundo da vida.

Reconhecemos assim que os movimentos sociais acolhem milhares e milhares de famílias vulneráveis e paupérrimas no campo e na cidade, realizando serviços que o Estado constitucionalmente, deveria prestar.

A literatura nacional e internacional sobre os determinantes sociais e ambientais do processo saúde-doença e equidade em saúde, incluindo recomendações da Organização Mundial da Saúde, mostra como a organização da população, desde o nível comunitário mais elementar até o mais abrangente em fóruns e redes sociais, contribui para o empoderamento e a promoção da saúde, essência para a reprodução e perpetuação da vida. O fortalecimento e a organização da população podem e devem ser considerados como elementos propulsores da melhoria da saúde coletiva de uma sociedade, o que impacta a todos, já que a saúde é produzida socialmente.

Por outro lado, contraditoriamente, nos últimos anos, inúmeras lideranças dos movimentos populares têm sido criminalizadas, enquanto defendem a população pobre, vulnerável e abandonada pelo Estado, entre o assédio e a violência do tráfico de drogas de um lado, e o assédio e violência de setores da polícia, de outro.

Importa reconhecer, por fim, que as sociedades mais avançados do globo, com indicadores de desenvolvimento humano mais elevados possuem alto grau de cooperativismo e associativismo. Estudos demonstram a relação virtuosa entre sociedade civil organizada, democracia e desenvolvimento humano. Em países como Holanda, Noruega, Finlândia, Suécia e Dinamarca entre 60% e 80% da população pertence hoje a uma associação, quer seja conservadora, popular ou progressista, ligadas ao tema do trabalho, da moradia, das mulheres, da cultura ou outro. Isso é fruto de liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de reunião e de ação organizada em prol de causas essenciais da existência humana. A liberdade, como bem sabemos, é um dos pilares estruturantes das sociedades capitalistas avançadas do norte.

Por essas e outras razões, os movimentos sociais e as populações vulneráveis devem ser reconhecidos pelos serviços comunitários e públicos prestados, pela sua contribuição no equacionamento dos graves e profundos problemas sociais brasileiros. Devem ser protegidos pela sociedade, pelo Estado e apoiados por meio de políticas públicas e sociais.

A criminalização dos movimentos sociais e populares aparece como medida que carece de qualquer analise aprofundada, carece de bom senso, de justiça e de humanidade. A proposta vai na contramão de uma sociedade diversa, pró-ativa, tolerante e plural que pretende tornar-se desenvolvida, indo na contramão da história e do que se almeja para o futuro do Brasil.

Constitui em última instância, um caminho perigoso, rumo à criminalização da solidariedade, das iniciativas de promoção humana e construção da cidadania.

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