Os limites do jornalismo sobre investigações

Por Samuel Lima.

O “caso Carlinhos Cachoeira” ocupa os espaços da mídia tradicional há pouco mais de dois meses, de forma mais intensa a partir da prisão do bicheiro, em 29 de fevereiro. De lá para cá, seus negócios escusos com operadores públicos e empresas privadas têm sido objetos de pautas num exercício que se pode identificar como “jornalismo sobre investigações”, na acepção de Solano Nascimento, salvo raríssimas exceções. A aprovação da CPMI para investigar as conexões do esquema deixa no ar a velha indagação: é pra valer ou de novo a sociedade vai assistir à “encenação” de uma nova pizza?

As ligações perigosas de Carlos Augusto Ramos, o Cachoeira, hoje recolhido ao presídio da Papuda, em Brasília, até aqui já vitimaram politicamente um senador (Demóstenes Torres, sem partido-GO) e colocam pelo menos três governadores no alvo: Marconi Perillo (PSDB-GO), Agnelo Queiroz (PT-DF) e Sérgio Cabral (PMDB-RJ). Em tese, os negócios das organizações criminosas comandadas pelo “empresário” envolvem governadores dos maiores partidos políticos com representação no Congresso Nacional, incluindo o mais importante opositor do governo Dilma Rousseff.

O pesquisador Guaraci Mingardi é categórico na definição de crime organizado:

“(a) existência de uma hierarquia bem definida (hoje ditada pela capacidade de liderança e pelo conhecimento); (b) previsão de lucro, de resultado operacional, daí a decorrência de um modelo com traços de empresa capitalista; (c) simbiose com o Estado, razão última da subsistência e perenidade”.

Apuração própria?

Do ponto de vista da cobertura, até aqui, prevalece um bordão comum nos casos de corrupção: os agentes públicos são expostos, como suspeitos, mas as empresas, salvo o caso da Delta Construções, ficam à sombra. O jornalismo sobre investigações, “dependente químico” da revelação de grampos e nacos de informação “liberados” pela Polícia Federal e Judiciário, vai auxiliando – por sua falta de investigação autônoma – o cozimento de mais uma pizza. Ao longo de toda cobertura, louvável exceção partiu da Folha de S.Paulo, que publicou entrevistas exclusivas com Fernando Cavendish (dono da Delta Construções, edição 19/4) e Andressa Alves Mendonça (mulher de Cachoeira, edição 27/4).

Nas edições do fim de semana passado (5-6/5), por exemplo, sobram grampos e faltam informações consistentes. Em O Globo, o distinto público vai encontrar o balcão de negócios dos advogados contratados pelos políticos até aqui suspeitos de envolvimento no megaesquema do bicheiro goiano. Ex-líder da oposição, o senador Demóstenes Torres tem como defensor um criminalista top: Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que já atuou como advogado de outros políticos acusados de corrupção. Cachoeira contratou os serviços do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Qual o valor dos honorários? No caso de Bastos, a reportagem inova na forma: “surgiram rumores de que o rei da jogatina em Goiás desembolsaria a fortuna de R$ 15 milhões pelos serviços advocatícios do ex-ministro. Bastos nega que o cachê seja tão expressivo”. Sem prova documental produzida pelo jornalista, valem como fonte os “rumores”.

Os textos publicados em O Estado de S.Paulo mantêm essa mesma toada. Senão vejamos:

“Diálogos interceptados pela Polícia Federal colocam a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) no foco das investigações sobre a organização criminosa comandada pelo empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, desmantelada pela Operação Monte Carlo.”

Pela undécima vez, a fonte única da investigação da PF se fez ouvir. Apuração própria do jornal? No limite, a reportagem ouviu a negativa de duas fontes (os catarinenses Norberto Rech, ex-dirigente da Anvisa, e o político Ênio Branco).

Relação delicada

A novidade ficou por conta da jornalista Suzana Singer, ombudsman da Folha de S.Paulo. Tocando num tema tabu, as relações da mídia com o esquema de Cachoeira, ela abre uma fresta para o debate público, ainda que faça uma estranha defesa prévia das relações da revista Veja com as organizações Cachoeira. Singer escreve:

“Já menções à imprensa, na grande imprensa, têm sido quase ignoradas. A Folha, que tem ombudsman para publicar o que a Redação menospreza, aparece em dois grampos, nada comprometedores”.

Com efeito, Singer retoma o artigo publicado pelo Diretor de Redação de Veja defendendo o indefensável: “ter um corrupto como informante não nos corrompe”. Na lógica do panfleto semanal da Editora Abril, “maus cidadãos podem, em muitos casos, ser portadores de boas informações, se o interesse público maior supera mesmo o subproduto indesejável de satisfazer o interesse menor e subalterno da fonte”. Até onde sabemos, a revista não é órgão do poder Judiciário para oferecer “delação premiada”, tampouco tem as prerrogativas de um Ministério Público para “investigar” quem quer que seja.

O mérito da coluna de Susana Singer, cujo apropriado título “Tema proibido” já diz muito, está no final:

“Grampos mostram que a mídia fazia parte do xadrez de Cachoeira. Que essa parte do escândalo seja tratada sem indulgência, com a mesma dureza com que os políticos têm sido cobrados. Permitir-se ser questionado, jogar luz sobre a delicada relação fonte-jornalista, faz parte do jogo democrático”.

A ver.

Resultados pífios

Um olhar mais geral sobre esse tipo de cobertura, na qual prevalece o “jornalismo sobre investigações” em detrimento ao indispensável jornalismo investigativo, nos remete outra vez ao jornalista Solano Nascimento (no seu excelente Os novos escribas), citando o pesquisador David Protess, ele reforça o potencial transformador deste último tipo de jornalismo na construção de uma agenda política: “os resultados substanciais, que envolvem regulamentação, legislação e mudanças administrativas” são plenamente alcançáveis desde que prevaleça o jornalismo investigativo, fortemente conectado ao interesse público e ao futuro da democracia.

Caso contrário, o risco é ficar ao nível indigesto da “pizza”, com pífios resultados individualizados: caem os Demóstenes, Perillos, Agnelos et caterva, mas as organizações criminosas continuam agindo, em profunda simbiose com o Estado. Ou será que Cachoeira é o único bicheiro em atividade no país?

***

Samuel Lima é docente da FAC/UnB, professor visitante na UFSC e pesquisador do objetos.

Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/

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