Os indígenas na barragem: a omissão da imprensa e a reprodução do discurso de preconceito contra o povo Laklãnõ-Xokleng

Por Viegas Fernandes da Costa*, para Desacato.info

Na semana que encerrou (03/06) o Vale do Itajaí (SC) viveu novamente as preocupações e os estragos da enchente do rio Itajaí Açu e seus afluentes. Para a próxima semana, a meteorologia indica uma grande quantidade de chuva, o que torna a situação preocupante, considerando o nível atual dos rios e a saturação do solo. O quadro se agrava se considerarmos o descaso do poder público para com as situações que envolvem a operação da barragem localizada no município de José Boiteux (SC), a maior da região e responsável pela retenção do maior volume de águas, e a população indígena afetada por suas operações.

Desde que construída para minimizar os efeitos das cheias nos principais centros urbanos do Vale do Itajaí, a Barragem Norte, como é conhecida, impactou diretamente na organização social, distribuição espacial e uso do solo da Terra Indígena Laklãnõ-Xokleng. A situação à qual foi submetida a população indígena daquela TI vem sendo denunciada há décadas, e um dos primeiros trabalhos publicados que discutem a questão é o livro “Opressão e Depredação”, escrito pelo antropólogo Sálvio Alexandre Müller e publicado pela editora da FURB em 1987 (obra, aliás, que merece nova edição).

O fato é que desde 2014 os indígenas da TI Laklãnõ-Xokleng vêm ocupando a Barragem Norte com o objetivo de forçar a negociação entre o Estado e os povos tradicionais a fim de mitigar os efeitos do represamento da água na barragem em sua comunidade tradicional. Afinal, por que seria lícito inundar grande parte da terra indígena e isolar sua população em benefício de centros urbanos como Blumenau e Gaspar?

Em 2015 foi assinado um Acordo de Negociação entre os governos federal e estadual e lideranças da TI Laklãnõ-Xokleng, onde o poder público se comprometia com a realização de diversas obras capazes de mitigar os efeitos da operação da barragem em tempos de cheias no território indígena, a saber: estradas vicinais, pontes, residências e canal extravasor, além de informar aos indígenas a área de segurança que afeta a comunidade e produzir o estudo dos impactos socioambientais provocados pela Barragem Norte.

Este Acordo de Negociação, assinado em 2015, foi DESCUMPRIDO PELO ESTADO, de modo que os indígenas voltaram a ocupar a Barragem Norte. Por se tratar de uma população invisível para as sociedades urbanas e os principais meios de comunicação, a questão não recebeu a devida atenção, tampouco o poder público se preocupou com as consequências do seu descaso. De modo geral, a sociedade não questionou as razões da ocupação da barragem, bem como ignora as condições de vida da população Laklãnõ-Xokleng em Santa Catarina, exceto por algum envolvimento de  instituições de ensino e pesquisa com a compreensão desta comunidade e a publicação do artigo intitulado “O outro lado da Barragem Norte”, escrito em 2014 por Jasom de Oliveira do Conselho de Missão Entre Povos Indígenas (COMIN), e repercutido em diversos jornais e portais da internet. Neste artigo Oliveira já denunciava: “desde o início da construção (1972) os impactos causados pela barragem são imensuráveis e se repetem a cada nova enchente que ocorre na região: famílias desabrigadas; casas inundadas e condenadas; falta de água potável; estradas interditadas; aldeias isoladas; cancelamento das aulas nas escolas; profissionais da saúde não conseguem fazer o atendimento nas aldeias; riscos de novos deslizamentos; insegurança e angústia pela próxima enchente”.

Quando, na última semana, a ameaça das enchentes se transformou e algo real, a imprensa fingiu surpresa e anunciou a ocupação da Barragem Norte pelos indígenas, impedindo seu funcionamento. O Jornal de Santa Catarina, maior jornal impresso da região em tiragem e abrangência, noticiou no dia 01 de junho, na página 7: “índios impedem entrada na barragem de José Boiteux”. Neste mesmo jornal, em sua edição do dia 02 de junho, outra manchete, na página 5, dizia “PF fará escolta de técnicos da Defesa Civil na Barragem de José Boiteux”. O tema, portanto, passa a ser tratado na esfera policial e o foco da chamada subentende a periculosidade da população indígena, Nesta mesma edição o jornal ainda dá espaço ao leitor Márcio Pereira, morador de Itapema (SC), que escreve na página 12: “Bem típico do Brasil falido em suas instituições, que por conta da velha e surrada culpa que nos impõem intelectuais de sala de aula, a aceitar que índios, que não querem e nem vivem nas suas culturas porque preferem a dos brancos (ou civilizados), a ponto de não deixarem técnicos da Defesa Civil avaliar as barragens. Engraçado que os mesmos índios vivem em regiões não demarcadas e vendem seus artesanatos numa boa. (…)”. Já outro leitor, Wilfredo Currling, apela ao bom senso e escreve que “é inadmissível que não se resolvam as pendências com relação à comunidade indígena, o que determinaria a desocupação, problema que se arrasta há anos”. A breve carta do leitor Currling foi a única voz que busca olhar para a questão indígena, ainda que sob a ótica utilitarista da resolução dos problemas que envolvem a inoperância da Barragem Norte, e sem entrar no mérito da condição de vida dos indígenas.

O principal articulista do Jornal de Santa Catarina, Francisco Fresard, também abordou o tema. Sob o título “Barragem à deriva”, escreveu: “O mesmo descaso ocorre com a barragem de José Boiteux, invadida por índios desde 2014. Há um conflito por terras e desde então eles ocupam a estrutura impedindo que qualquer manutenção e operação ocorram. Estamos sem a devida proteção e sem informação. Se tudo estivesse funcionando como deveria, provavelmente essa enchente teria impactos menores em toda a região do Vale do Itajaí. Até quando vamos ter que aturar esse tipo de descaso? Até quando teremos que dar atenção à prevenção só quando chove forte? Isso passa dos limites. É certo que o governo estadual aumentou as barragens e tem feito melhorias na bacia de olho na prevenção, mas deixar o monitoramento capenga por causa de R$ 5 mil por mês, seja de quem for a responsabilidade, beira o absurdo.

Fresard fala em descaso, mas com a barragem, não para com os indígenas. Fala também de invasão, ausência de proteção, dos limites que faltam e de absurdo. Entretanto, tudo isto sob à ótica da cidade em risco de cheia.  Em nenhum momento seu olhar recai sobre a condição indígena e às razões que levam à ocupação da barragem. Como vimos no Acordo de Negociação assinado em 2015, estas razões vão além do conflito por terras.

Já no âmbito das redes sociais, os comentários publicados sob postagens de jornalistas influentes na região do Vale do Itajaí resultaram em verdadeiros atestados de ignorância da questão indígena e de apologia à violência, na medida em que negam ao povo Laklãnõ o direito à autodeterminação e sugerem sua eliminação. Houve até jornalistas tratando a questão como um ato de falta de masculinidade do governo do Estado e dos deputados que representam o Vale do Itajaí, e reivindicando a mobilização das forças armadas contra os indígenas. Um leitor, em comentário publicado sob uma destas postagens, escreveu: “Deveriam levar o exército e tirar aquela malandragem de lá, se precisamos trabalhar pra ter as coisas eles que vão trabalhar também malandragem . Indios falsificados.” (SIC).

Em todo este contexto que envolve a segurança e reconhecimento dos direitos de existir do povo que habita a Terra Indígena Laklãnõ-Xokleng e a segurança da população que, sob um histórico de ocupação irregular e não planejado dos solos da bacia do rio Itajaí Açú, periodicamente convive com as enchentes, a imprensa abdica do seu papel de informar e promover o debate a respeito da questão indígena e das razões que resultam na ocupação da Barragem Norte e trata o problema como de ordem exclusivamente policial e de interesses econômicos. Esta omissão e tratamento contribui para a perpetuação do preconceito contra os povos originais sobreviventes no Vale do Itajaí, submetendo-os à violência, marginalização e invisibilidade.

*Historiador, professor do Instituto Federal de Santa Catarina e mestre em Desenvolvimento Regional.

Imagem: CIMI

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