Os homens que não amavam as mulheres

Por Ruy Braga.
Em 2008, a trilogia de ficção policial intitulada Millennium (Os homens que não amavam as mulheres, A menina que brincava com fogo e A rainha do castelo de ar) vendeu cerca de 21 milhões de exemplares em mais de quarenta países, alavancando seu autor, o jornalista sueco Stieg Larsson, à condição de segundo best-seller mundial.

Infelizmente, Larsson não viveu para conhecer sua inesperada fama: morreu de um ataque cardíaco fulminante aos 50 anos, em 2004, pouco depois de entregar os originais para seu editor.

Desde então, muito tem sido debatido a respeito da áspera violência, especialmente sexual, contida em seus livros. Os debates apontam para uma anomalia: como explicar que a Suécia, um país conhecido por ser uma espécie de paraíso na terra, onde supostamente imperariam a paz social e a tolerância racial, pudesse servir como pano de fundo para tanta sordidez praticada contra mulheres por indivíduos poderosos que, pra piorar, são acobertados por autoridades governamentais corruptas? Uma mirada no homem por detrás da trilogia insinua uma resposta.

Antes de Millennium, Stieg Larsson notabilizou-se como o principal especialista nos grupos neonazistas suecos. Tendo sido criado por um avô comunista que durante a Segunda Guerra Mundial foi aprisionado devido a seu ativismo, não causou surpresa que o jovem Larsson tivesse decidido juntar-se às manifestações estudantis contra a Guerra do Vietnã durante o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. A relação do jornalista com a luta política evoluiu na direção da fundação da Liga Comunista dos Trabalhadores, uma organização que durante décadas atuou sob a bandeira da IV Internacional Comunista.

Militando na Liga, Larsson desenvolveu uma forte intervenção nas lutas antirracistas e antifascistas de sua terra natal. Quando a extrema direita sueca começou a crescer no início dos anos 1980, Larsson ajudou a fundar aStoppa Rasismen (“Parem com o racismo”), uma organização política de combate conhecida por enfrentar fisicamente as manifestações neonazis. Em 1991, no mesmo ano em que os partidos ultranacionalistas suecos que albergavam grupos neonazis alcançavam inéditos resultados eleitorais (desde 1928, ao menos), Larsson publicava seu primeiro livro, Os extremistas da direita. Em resposta, um jornal neonazista publicou um artigo onde constava o nome completo de Stieg Larsson, sua foto e uma pergunta: “Devemos permitir que este homem continue fazendo seu trabalho ou devemos fazer algo a respeito?”


Stieg Larsson

Apenas quatro anos depois de terem pintado um alvo em suas costas, oito de seus camaradas foram assassinados pelos neonazis. Larsson decidiu então fundar a revista Expo a fim de expor as atividades dos extremistas de direita e denunciar a complacência com que as autoridades governamentais tratavam o crescimento do neonazismo sueco. Desde então, Larsson investiu todas as suas energias para transformar o jornalismo investigativo em uma ferramenta de luta contra o ultranacionalismo de direita. Apesar deste trabalho absorvê-lo completamente, afastando-o da militância cotidiana na Liga Comunista, ele nunca abandonou o programa marxista revolucionário: em seu testamento, deixou todos seus bens para o partido que ajudou a fundar.

Por meio de seu trabalho, Larsson revelou o avesso do modelo sueco. Seus livros desafiaram a visão de um país pacífico e tolerante, estimulando inúmeros debates a respeito das raízes sociais da violência política em uma sociedade altamente desenvolvida, mas que, contraditoriamente, apresenta um longo histórico de simpatias nazistas e onde as estatísticas de violência contra as mulheres são incrivelmente altas. Este foi o ponto de vista privilegiado em sua afamada trilogia: a opressão e a violência contra as mulheres. A protagonista dos livros, Lisbeth Salander, uma personagem a um só tempo vítima e heroína das histórias, resolve as tramas com a ajuda de Mikael Blomkvist, um jornalista de meia-idade comprometido em denunciar, por meio da revista Millennium, os capitalistas suecos e a corrupção governamental que os acoberta.

Salander representa o arquétipo do oprimido que sabe que não pode confiar no Estado em sua luta por justiça. Conta apenas com suas próprias forças e com a ajuda de um jornalista esquerdista. Na verdade, Blomkvist representa a transposição literária do próprio Larsson para as páginas da trilogia. Não por acaso, como lembra Barry Forshaw em The Man Who Left Too Soon: the Biography of Stieg Larsson (O homem que nos deixou muito cedo: a biografia de Stieg Larsson –Londres, John Blake, 2010), o jornalista trabalhava o dia todo na Expo, dedicando- se aos livros durante suas noites de insônia. Ou seja, a literatura foi a continuação de sua luta política por outros meios. Seus personagens revelam uma realidade social enrijecida e opressora, produto da violência política contra os oprimidos, especialmente imigrantes e mulheres. Uma violência que ele conhecia bem de perto…

De Silvio Berlusconi a Nicolas Sarkozy, já nos acostumamos a assistir altas lideranças europeias contemporizando com partidos ou grupamentos ultranacionalistas, na tentativa de angariar votos à direita. Além disso, políticas de criminalização dos imigrantes somadas a leis cada dia mais restritivas dos direitos sociais dos trabalhadores europeus prepararam o terreno para a escalada da intolerância racial num continente aterrorizado pelo aprofundamento da crise econômica. Como resultado, líderes ultranacionalistas ameaçam ganhar eleições majoritárias em países tão importantes como a França. Aparentemente, Itália, Holanda, Hungria e Polônia seguem o mesmo caminho. Em poucas palavras: o continente está brincando com fogo.

Ao contrário do establishment europeu, cada dia mais inclinado a ceder à direita, Stieg Larsson decidiu levar até as últimas consequências a lição do velho bolchevique que inspirou a criação de seu partido: “Não se discute com o fascismo. Combate-se!” (Leon Trotsky).

Fonte: Blog da Boitempo, com o título “O continente que brincava com fogo”

Tomado de http://www.aldeiagaulesa.net/

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