Os 70 anos de “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir

Os mitos de ontem e de hoje

Por Katiuscia Zini para as Blogueiras Feministas.

Em 2019, o livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir completa 70 anos de sua publicação. Nos dois volumes da obra a autora escreve sobre a situação das mulheres, abrangendo diversos aspectos: biologia, psicanálise, história, desenvolvimento psicossocial, mitologia, entre outros. Para celebrar o septuagenário do livro escrevi uma resenha comentada, tendo como recorte os mitos que envolvem as mulheres, temática abordada no Volume I – Fatos e Mitos. Meu texto não segue a mesma ordem apresentada por Beauvoir e obviamente está muito aquém do apresentado por ela. Trata-se de um modo de compartilhar um pouco do muito que Beauvoir me trouxe.

Beauvoir nos conta que, na mitologia, as mulheres ocupam um lugar auxiliar, como se lhes coubesse enriquecer e amaciar as obras dos homens: os deuses masculinos representam o destino, rigores de Justiça enquanto as deusas representam benevolência, doçura da caridade (no caso da Virgem Maria, por exemplo). O cristianismo aparece em vários momentos durante o livro I, mas esse tema não tem um capítulo para si. Sobre a ideologia cristã, Beauvoir escreve que há no Evangelho um sopro de caridade que se estende tanto aos leprosos quanto as mulheres.

Na Idade Média, o corpo da mulher torna-se um grande problema, um grande mal a ser combatido. O cristianismo recusa à imagem de Maria o caráter de esposa para exaltar mais puramente a Mulher-Mãe, e esconder assim que era uma mulher e tinha um corpo. Os ritos do casamento, primitivamente destinavam-se a defender o homem da ameaça que a mulher traz, sendo que após os ritos essa ameaça é neutralizada e ela torna-se sua propriedade. Ainda falando sobre o casamento, a mulher foi elevada à dignidade de pessoa humana para que pudesse, em seguida, ser escravizada ao homem mediante cerimônias e contratos.

Após os ritos nupciais, a “boa esposa” (aspas dela) é para o homem um precioso tesouro; na sociedade burguesa cabe a mulher representar, visto que seus atributos físicos e intelectuais exteriorizam a fortuna do marido. O que exemplifica essa ideia é a descrição de Beauvoir sobre o modelo de herói de Montherlant: ‘apega-se a mulher, não para desfrutá-la e sim para desfrutar de si mesmo’ (p 275).

A castidade (foi ou é?) imposta as mulheres por questões econômicas e religiosas, de modo que os homens sejam autenticados como pais de seus filhos. E Simone fala novamente sobre representação: é embutido à mulher que represente o papel designado pela sociedade – casta publicamente e “pecadoras no mistério do leito” (p 258).

Sobre a menstruação, em diversas culturas, é a partir da menarca que a mulher passa a ser considerada impura. Entre os aleutas, pensava-se que durante o período menstrual a mulher seria possuída por espíritos e carregada de forças perigosas. Os mitos em torno da menstruação e sobre o período que antecede, conhecido no Brasil como tensão pré-menstrual – TPM ainda são muitos, e resistem ao século XXI.

As modas e costumes, ao longo dos séculos, são comumente usados para separar o corpo feminino de sua transcendência. A mulher é mais desejável quanto mais sua natureza está escravizada, a mulher “sofisticada” (aspas de Beauvoir) sempre foi idealizada como objeto erótico. Para confirmarmos essa ideia de Beauvoir basta dar uma espiada nos desfiles e revistas de moda.

Sobre a expressão “ter uma mulher” (aspas de Beauvoir) que é usada ainda hoje, esta expressão comporta um duplo sentido: função de objeto possuído pelo homem e de que este é o juiz. Nas lendas e mitos aparecem várias mulheres que são suspeitas ou condenadas, visto que inspirar o desejo a um estranho já seria estar em falta com o esposo e com a sociedade. Na literatura brasileira temos o clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Simone pontua que se um homem desobedece às leis, continua a pertencer à comunidade, em relação a mulher, se evade de alguma regra imposta, desencadeia nas coletividades reações severas. As pressões sociais têm sentido ontológico, não são unicamente convenções e cada indivíduo sente de modo singular. No caso de nós, mulheres, elas são bem mais pesadas e perversas.

Encerro esse texto com a proposta de reflexão sobre a seguinte frase de Simone: “O ideal do homem médio ocidental é uma mulher que se submeta livremente a seu domínio, que não aceite suas ideias sem discussão, mas que ceda diante de seus argumentos, que lhe resista com inteligência para acabar deixando-se convencer” (p 251).

Katiuscia Zini é psicóloga, especialista em Gestão Pública, especialista em Serviço Social e Gestão do SUAS. Trabalha no atendimento a mulheres em situação de violência.

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