Originários desta terra

Povos indígenas repudiam governo golpista. Repudiam violência, expulsão de suas terras e judicialização de suas lutas pelo governo Temer

Ato no Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília (Foto: CIMI)

Por Julia Saggioratto, para Desacato.info.

“Os povos indígenas estão entre aqueles considerados descartáveis. Se legalmente puderem ser descartados, seus territórios se tornam viáveis para a exploração dos monocultivos agrícolas, da pecuária, dos minerais, madeira e energia. A vida e o modo de ser dos povos indígenas, assim como das demais comunidades tradicionais, não contam para o sistema, não somam ao governo, não agregam força política”. As palavras são de Roberto Antonio Liebgott, da Coordenação do Conselho Indigenista Missionário regional Sul e expõem a forma como o capital compreende os povos indígenas, não como vidas humanas originárias desta terra, mas como algo que atrapalha o “progresso” desse sistema de morte. Para além disso, são, também, entendidos como ameaças, já que resistem há mais de 500 anos com sua força e sua mística, em harmonia com a Terra Mãe, sem ceder um dia da luta. “São vidas de inocentes, vidas de crianças que estão aqui atrás da gente esperando que um dia alguém tome atitudes para que se viva em um país mais democrático, em um país onde cada ser humano tenha onde viver, tenha seu lugar para ficar, tenha sua casinha, tenha um saneamento”, comenta Deoclides de Paula, Kaingang da Terra Indígena Kandóia, no Rio Grande do Sul.

Criança Indígena na Terra Indígena Carazinho (Foto: Julia Saggioratto)

É preciso trabalhar sem cessar e sem reclamar para um patrão para poder consumir sempre mais, consumir tudo aquilo que o capital nos ensina que é necessário. Consumir e descartar, para consumir mais, e acumular, e, quem sabe um dia, ser o patrão. E onde os povos indígenas se encaixam nessa reflexão? Em lugar algum. Talvez por isso incomodem tanto esse sistema, pois sabem que a felicidade não vem das coisas que acumulamos, mas sim daquelas que dividimos, que compartilhamos com os/as nossos/as. “Para nós povos indígenas viver em harmonia, viver dividindo a vida, a alimentação, viver dividindo a terra entre nós, isso é sagrado. É um alerta que a gente deixa porque a terra para nós é tudo, a terra para nós é mãe e nós não vendemos terra”, declara Deoclides de Paula.

Crianças tomando banho de rio na Terra Indígena Sêgu, em Constantina, RS (Foto: Julia Saggioratto)

O racismo sofrido pelos povos indígenas, resultado de uma mídia comercial que reproduz o ódio produzido pelos donos do capital fere de morte estes povos que, neste momento de golpe, são alvos ainda mais frequentes de atos de violência que permanecem impunes. De acordo com Ivan Cesar Cima, do CIMI regional sul, o ano de 2017 foi um período de intenso ataque aos direitos dos povos indígenas, assim como para a população pobre e excluída: “esse ataque foi direcionado especialmente à negação da demarcação de seus territórios, espaço sagrado para sobrevivência física e cultural desses povos”, destaca.

“A bancada ruralista a cada negociata governista crava ainda mais o punhal maldito do agronegócio no coração das populações indígenas” (Foto: CIMI)

Segundo ele, o governo golpista de Michel Temer utilizou os direitos originários como objeto de negociação diante de processos e de ameaças de perda de poder, para barganhar votos do Congresso Nacional. “A bancada ruralista, uma das maiores do congresso, na ânsia desenfreada para dilapidar os direitos indígenas, a cada negociata governista crava ainda mais o punhal maldito do agronegócio no coração das populações indígenas de todo o país”, completa Ivan.

Indígenas fazem paralisação na rodovia de Erechim a Goio-en (Foto: CIMI)

Seguindo a cartilha da bancada ruralista, uma das medidas mais truculentas tomadas pelo governo Temer para negar o aceso e expulsar os povos indígenas de seu território foi o Parecer 001/2017, da AGU, que obriga os servidores de órgãos federais a seguir o Marco Temporal. Esta tese ruralista determina que apenas os indígenas que estivessem sobre o território tradicional no dia 5 de outubro de 1988, ano da promulgação da carta magna, ou lutando judicialmente por ele, teriam direito ao seu espaço. O fato é que antes de 1988 os povos haviam sido expulsos de seus territórios, ameaçados e escravizados, e não poderiam lutar judicialmente já que eram tutelados pelo Estado. Isso significa que o Marco Temporal inviabiliza a conquista do território tradicional pelos povos originários, deixando o espaço livre para que o latifúndio se espalhe e as mineradoras explorem.

Reunião realizada na TI Kandoia (Foto: CIMI)

“Esse governo que faz uma portaria atrás de outra a mando do agronegócio, a mando de deputado, que tem milhares de hectares de terras, que estão acabando com a natureza. […] A política desse governo é para acabar com os povos indígenas do Brasil”, destaca o Kaingang Deoclides. Ivan Cima ainda cita a PEC 215, que busca repassar a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas aos deputados federais, como uma aberração, “pois temos nesse mesmo congresso a bancada ruralista, a maior de todas, a mais predadora, que pretende usurpar por completo os direitos indígenas. Este caso nos faz lembrar de um dito popular ‘que colocamos as raposas para cuidar do galinheiro’”, comenta. O Kaingang Deoclides completa dizendo que “se paga emendas parlamentares para destruir o que foi construído há muitos anos, com muita luta, sofrimento. Morreram tantos índios, tantos quilombolas, tantos caboclos, tantos ribeirinhos morreram pra tentar colocar dentro da lei maior que é a Constituição Federal, garantir os direitos ali dentro”.

Comunidade Novo Xingu, da TI Sêgu, reivindica demarcação do seu território tradicional (Foto: Julia Saggioratto)

Um fato preocupante em relação a luta desses povos pela efetiva garantia de seu territórios diz respeito a judicialização das demandas e a criminalização das lideranças indígenas e dos procedimentos de regularização fundiária. De acordo com Ivan, nesses últimos anos, devido ao incansável processo de luta pela garantia efetiva de seus territórios, inúmeras lideranças indígenas foram presas e processadas, levando à criminalização e à perseguição destas lideranças e de seus/as aliados/as.

Terra Indígena Rio dos Índios, em Vicente Dutra, RS (Foto: Julia Saggioratto)

“No Rio Grande do Sul, os indígenas enfrentaram uma série de desafios. Os Kaingang e Guarani, especialmente aqueles que vivem às margens de rodovias, acampados em situações precárias, vivem um cotidiano de desprezo, de preconceito, de ações fascistas e racistas que a cada dia negam o acesso dos indígenas aos seus territórios e disseminam ainda mais o preconceito à essas populações. Com relação aos Kaingang no norte gaúcho, a judicialização das lutas e reivindicações desse povo têm atacado a centralidade de suas reivindicações, que é a demarcação de seus territórios. Já os Guarani do litoral gaúcho continuam as margens de rodovias, expropriados de seus direitos e excluídos de seu território. Devido a esta situação, vários procedimentos de regularização fundiária estão entregues a diferentes esferas do poder judiciário e aguardando os trâmites deste poder, que segue a passos de tartaruga. Já os Guarani continuam a luta histórica pela “Terra Sem Males” e nesse processo, mesmo excluídos e expropriados de seus territórios tradicionais, resistem. Este povo, mesmo estando no grande território Guarani, é obrigado a viver em acampamentos às margens de rodovias, em situação humilhante, entregues à própria sorte”, comenta Ivan.

Crianças na Terra Indígena Rio dos Índios, em Vicente Dutra, RS (Foto: Julia Saggioratto)

O Kaingang Deoclides, em forma de desabafo, manifesta o repúdio dos povos indígenas, principalmente o povo Kaingang da região sul e sudeste, em relação à conjuntura política que afeta também as comunidades e que tem o objetivo de exterminar esses povos da região. “Nossas lideranças estão sendo presas para que não prossigam com as demarcações de terras, com as ações sociais do governo. Porque se não demarcar nossas terras a gente não tem acesso à educação, à saúde, saneamento, que é o mínimo de direito para esse povo sofrido que teria que ser cumprido”, declara Deoclides.

Dona Maria Pinto da Terra Indígena Carazinho (Foto: Julia Saggioratto)

O missionário Ivan Cima salienta que mesmo em um cenário totalmente desfavorável os povos indígenas não se curvaram diante dos inimigos: “seguiram no caminho da resistência e da luta pela garantia de seus direitos. Foram vários os momentos de enfrentamento; diversos trancamentos em rodovias, audiências com o Ministério Público Federal, diversas viagens à Brasília, participação do Acampamento Terra Livre (ATL), em abril e realização do 1º ATL Sul, onde os povos do sul discutiram as lutas e desafios desses povos”.

Crianças realizam apresentação cultural na Terra Indígena Sêgu, em Constantina, RS (Foto: Julia Saggioratto)

Deoclides de Paula ainda ressalta que a população precisa compreender a realidade indígena: a gente não é empecilho do progresso, […] vamos defender a natureza, hoje praticamente destruída, mas nós sempre vamos viver em harmonia com a natureza, em harmonia com o ser humano, nosso povo sempre é assim. […] O que a gente quer é viver em paz. Ter nossa terra pra viver. […] Se nós sofremos até aqui e conseguimos sobreviver, eu acredito que ainda vamos muito longe, defendendo o direito de todos, principalmente a mãe terra”.

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