Organização e resistência: os dois meses da ocupação Povo Sem Medo

Por Sarah Fernandes.

Há exatos dois meses um grupo de 500 pessoas reuniu coragem, esperança e um sonho em comum e aceitou o desafio de travar uma luta por moradia sem data pra terminar.

Juntos, ocuparam um terreno no ABC Paulista, na área metropolitana de São Paulo, vazio há 30 anos. Lá iniciaram a ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo, que hoje reúne, pelo menos, 8 mil famílias e é uma das maiores do país.

Enfrentando truculência de vizinhos, isolamento pela guarda municipal e decisões judiciais consideradas preconceituosas, os moradores seguem dando lições de organização, solidariedade e resistência.

Entre a maioria deles há um fato em comum: o desemprego, que os impossibilitou de continuar pagando aluguel. “Eu trabalho desde os 13 anos, tenho dois filhos e há um ano estou desempregada. Não tenho mais condições de pagar aluguel, mas as lições de solidariedade que aprendi aqui foram gigantes. Vocês não sabem o que é abrir o armário e não ter um pão para seu filho”, disse uma das moradoras, que se identificou apenas como Mônica.

“Tenho uma filha com deficiência que precisa de um leite especial e eu vendo água nos faróis de São Bernardo para tentar comprar. É duro levar pedrada quando você está tentando. É duro ouvir que é vagabundo quando não é”, disse outro morador, chamado Manuel, em lágrimas.

“Viemos em busca de uma moradia própria, mas quando chegamos aqui vemos que nosso problema é pequeno perto do problema do outro. O problema do companheiro é nosso problema também e nós procuramos resolver e sermos úteis. O movimento sempre ensinou solidariedade e respeito. Aqui ninguém sonha sozinho”, disse outra moradora, que preferiu não se identificar.

Organização

Juntos eles enfrentam o sol embaixo das lonas pretas ou a chuva forte que entra nos barracos e molha os poucos os pertences que possuem.

Para facilitar a organização das famílias, a ocupação foi dividida em 19 grupos, cada um com um coordenador, uma cozinha comunitária e um banheiro. Toda estrutura foi construída em mutirão pelos moradores e os alimentos e materiais de limpeza são frutos de doações, muitas vezes dos próprios ocupantes, que fazem questão de dividir o que recebem. O uso de álcool e drogas é totalmente proibido.

Desde o primeiro dia, a Guarda Municipal isola a rua que dá acesso ao terreno, dificultando a entrada de doações. Os ocupantes enfrentam também reações de vizinhos contrários à ocupação, que chegaram a fundar, em setembro, o Movimento Contra Invasão em São Bernardo do Campo (MCI), que cobra uma postura mais incisiva do poder público e da Justiça na reintegração de posse da área.

Um morador de um condomínio chegou a atirar com uma arma de fogo contra a ocupação e atingiu no braço de Audinei Serapião da Silva, que foi operado na sequência e passa bem. O movimento orienta a não revidar provocações.

Proposta

Os ocupantes querem que o terreno seja destinado à construção de prédios pelo Minha Casa Minha Vida Entidades, na faixa 1, para famílias com renda mensal de até R$ 1.800. Para isso, o movimento reivindica que a área seja desapropriada pelo Governo do Estado ou comprada pela Caixa Econômica Federal.

Para pressionar o governador Geraldo Alckmin (PSDB), milhares de manifestantes, entre moradores da ocupação e apoiadores, marcharam 23 quilômetros, saindo da ocupação até o Palácio do Governo, na zona sul da capital paulista, na terça-feira (31).

Na ocasião, eles conseguiram uma audiência com os secretários de Habitação, Rodrigo Garcia, e da Casa Civil, Samuel Moreira. Garcia marcou uma nova reunião para o próximo dia 10 e se comprometeu a “fazer uma análise de cadastramento de demanda específico para a ocupação de São Bernardo do Campo e conhecer a realidade de cada uma das famílias”.

“Depois do governo de Michel Temer [PMDB] tem sido muito difícil qualquer liberação de moradia. O orçamento deste ano (do governo federal) para moradia popular é de 35 mil casas para o Brasil e nem isso eles fizeram”, disse coordenador geral do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, em uma reunião realizada na segunda-feira (30) com os moradores.

O terreno ocupado fica entre a fábrica de caminhões Scania e um condomínio de prédios residenciais e pertence à construtora MZM. Em 2014 a prefeitura de São Bernardo, ainda na administração de Luiz Marinho (PT), notificou a proprietária devido ao não cumprimento de função social da área e exigiu que ela fosse parcelada, o que nunca ocorreu.

Passados três anos a área foi ocupada pelo movimento e a reação veio de forma imediata: a construtora ingressou com pedido de reintegração de posse e no mesmo dia conseguiu liminar do juiz Fernando de Oliveira Ladeira autorizando a Polícia Militar a executar a ordem de despejo.

Com um recurso, o movimento conseguiu suspender temporariamente a decisão, porém, na última audiência, realizada em 2 de outubro, os três desembargadores da 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram, por unanimidade, manter a reintegração de posse.

Ela ficou condicionada, no entanto, a uma reunião do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp), marcada para 11 de dezembro, com representantes do governo federal e estadual, da prefeitura de São Bernardo e com a construtora. “Nossa proposta é que haja uma desapropriação pelo estado e o financiamento para construção pela Caixa, porque as pessoas aqui vão pagar por suas casas”, disse Boulos.

Apoio

Na noite de segunda-feira (30), a ocupação foi foco de uma polêmica: a Justiça Paulista proibiu o cantor Caetano Veloso de realizar um show de apoio na ocupação, o que causou comoção de militantes apoiadores e artistas. Naquela noite, o vereador de São Paulo e ex-senador Eduardo Suplicy (PT) dormiu em um dos barracos em apoio ao movimento.

“Nós viemos aqui com vontade de cantar e com a missão de cantar, para mostrar solidariedade ao movimento que vocês levam à frente. Mas como já sabem, manobras foram feitas para que o show não pudesse acontecer. No entanto estamos aqui, estamos juntos. Eu, os outros artistas que estão aqui e vocês”, disse Caetano Veloso no palco da ocupação, acompanhado dos cantores Criolo e Emicida, enquanto era aplaudido por um público de milhares de pessoas. “É a primeira vez que sou impedido de cantar no período democrático”, disse.

Boulos considerou a proibição “absurda” e “ilegal” e a classificou como censura. “O que eles fizeram foi dar mais força e ânimo para tomarmos as ruas. Nossa melhor resposta à censura e falta de democracia é exercer nosso direito de manifestação e nossa democracia, e disso não vamos abrir mão. Já estamos dando resposta, porque o prefeito [Orlando Morando, do PSDB] deve estar morrendo de dor de cotovelo de ter artistas tão importantes aqui no meio pisando no barro junto com a gente”, disse o dirigente na ocasião.

Ainda na segunda-feira, estiveram presentes na ocupação as atrizes Letícia Sabatella, Alinne Moraes, Sônia Braga e a cineasta Marina Person. “Uma coisa fundamental na vida é comida e moradia, mas também ter o direito de se divertir, de sair com suas crianças… Tem muitas coisas erradas e a única certa que estou vendo é essa ocupação e suas propostas. Eu não posso ser 100% feliz se o outro também não for,” disse Sônia Braga.

Fonte: Brasil de Fato

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