Onze pessoas e dez cadeiras

Quando era bem pequena, em casa havia onze pessoas e dez cadeiras, de modo que eu sempre comi ajoelhada de modo que aprendi um jeito de rezar reclamando.
Toda noite reclamo a Deus o meu lugar no mundo e Deus me olha com um jeito de não-tem-jeito-essa-marmotinha e me sorri. Às vezes ajoelho pra descansar, nunca ajoelho pra rezar. “Está errado!”, vão dizer, mas acho que não. Quando rezo estou tão cansada que nada é mais justo que esteja deitada e entre sonho e verdade, vou dizendo as verdades mais verdadeiras.
Sim. Nada escapa à sonolência e sou muito mais sincera na petição-reclamação-agradecimento. Quando rezo acordada, é em pé e outro dia fui falar com Deus e fui me afastando pro fundo da capela até que senti um braço que se apoiava na beirinha da parede. Pensei: é agora! Veio me buscar pra uma conversa. Virei e era um operário do saneamento. Disse-lhe sem graça: – Perdoa, moço, achei que era Deus. Ele riu faltando os dentes, o que me deu uma sensação de janela aberta e mesa posta. Daí pensei mesmo que era Deus. – É… Todo dia reclamo o meu lugar no mundo. O senhor do saneamento respondeu: – Pode ser que seu lugar não é no mundo. Saí da capela e prometi não reclamar por uns dias, mas não deu certo. Ainda preciso que me deem uma cadeira.

 Imagem: “Mujer durmiendo ” de Pablo Picasso.

Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP

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