ONU: No Brasil a tortura não é um fenômeno isolado

Por Juan Luis Berterretche, para Desacato.info.

Desde a primeira visita em 2011 do Subcomitê das Nações Unidas sobre a Prevenção da Tortura (STP), alerta que “a tortura não é um fenômeno isolado no Brasil”, especialmente “nos primeiros dias em que os detentos ingressam no sistema carcerário”. Voltou a se afirmar isto pelo relator especial sobre o tema para Nações Unidas, o argentino Juan Ernesto Méndez. Ele esteve no Brasil entre os dias 13 e 14 de agosto de 2015 e visitou doze penitenciárias de São Paulo, Sergipe, Alagoas, Maranhão e Distrito Federal. Em sua descrição afirma: “Seja em prisões provisórias ou definitivas observamos condições caóticas. Tem grande superpopulação nos locais de detenção, facilmente 200% ou 300% a mais das suas capacidades. E quando tem superpopulação todos os outros aspectos pioram.”

De 2004 a 2014, a população carcerária brasileira aumentou 80% em números absolutos, passando de 336 mil presos para 607 mil, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). E localizando-se no quarto lugar depois dos EUA, a China e a Rússia, nessa ordem. Mas, para os pesquisadores independentes o número sobrepassa os 700 mil, e o Brasil já teria ocupado o terceiro lugar. Este crescimento brutal da quantidade de presidiários superando a infraestrutura insuficiente se processou durante os governos do PT.

 

Méndez afirma: “Em todas as visitas vimos superpopulação, problemas de assistência médica aos presos, violência entre os detentos, falta de alimentação adequada, e claro, falta de acesso à educação e reinserção social”. Além disso, salienta como problema “a falta de capacidade para detectar a tortura por parte de médicos especializados”.

Méndez nos diz também que a pior situação carcerária que encontrou foi no Complexo penitenciário de Pedrinhas em São Luís do Maranhão. Desde a rebelião iniciada em dezembro de 2013, foram registrados inumeráveis casos de mortes e violações de direitos humanos. A ONU pediu ao Brasil em 2014 que investigasse a violência nos presídios de Maranhão, principalmente em Pedrinhas, onde mais de 60 detentos foram assassinados depois do motim entre grupos criminosos. Demonstrando preocupação ao saber que os detentos tinham sido decapitados.

 

O relator da ONU assinala que a prática da tortura no país poderia ser coibida em parte com o fim da figura judicial de prisão preventiva ou provisória. Esta, “ainda é muito comum no Brasil e termina sendo uma pena antecipada. É um círculo vicioso que em lugar de resolver o problema da criminalidade o exacerba”. Em consequência, Méndez sugere também rever outras normais penais para quem comete delitos menos violentos e que não precisaria cumprir pena num cárcere.

O que institucionaliza a tortura é a continuidade do ciclo de impunidade em relação com essa prática. No país é muito pouco ou nada o que se faz para investigar, processar e castigar os delitos de tortura. Existe um espírito corporativista nos agentes policiais que os protege perante este e outros delitos. E uma clara renúncia das autoridades policiais, judiciais, municipais, estaduais e federais, para encarar com honestidade e justiça este grave problema de direitos humanos.

Segundo o relator da ONU a falta de humanidade no tratamento carcerário e a impunidade são herança da ditadura militar. “É um legado que persiste na atuação da polícia e os agentes do estado. Há também um forte aspecto racial e de classe que é preocupante. Mas, os governos democráticos pós-ditadura não se devem esconder detrás do fato de ter herdado a tortura do governo militar”. Três décadas depois, os distintos Executivos longe de resolver o problema o tem institucionalizado.

Mas, ainda mais, a discussão neste nefasto Congresso atual da redução da maioridade penal para 16 anos, se fosse aprovada a redução, irá resultar em penas mais altas e em que os jovens detidos convivam com delinquentes habituais. As experiências de medidas similares em outros países só resultaram no agravamento dos problemas delitivos. Estamos frente a um Congresso contaminado de corrupção que longe de ocupar-se dos delinquentes irrecuperáveis que tem em seu seio, pretende aumentar a penalização dos jovens.

Depois da visita de Méndez, o Subcomitê das Nações Unidas sobre Prevenção da Tortura (SPT) voltou a examinar Brasil de 19 a 30 de outubro de 2015. Durante a visita, o subcomitê tem direito a fazer inspeções supressivas nas prisões. No final da inspeção serão apresentadas observações preliminares às autoridades brasileiras através de um informe confidencial. Mas, o protocolo facultativo do subcomitê tem sido ratificado por 80 Estados e eles são incentivados a que o informe se faça público. Esperamos que o governo publique o novo informe da ONU.

O indiscutível é que a impunidade da tortura em cárceres e locais policiais é um componente fundamental do Terrorismo de Estado no país. Como o demonstrou o caso do trabalhadora da construção Amarildo de Souza, da favela da Rocinha no Rio de Janeiro; detido pela polícia carioca em 14 de julho de 2013, numa Unidade da Polícia Pacificadora (UPP), torturado ali, executado e depois desaparecido. Mais de dois anos depois, ainda não se tem iniciado o julgamento aos executores identificados deste crime. E com certeza a Justiça não tem nenhuma intenção de julgar a responsabilidade dos comandos da Polícia Militar, a Secretaria de Segurança do Estado e do governador do Rio de Janeiro implicados, sem lugar a dúvidas, nestes crimes.

Como podemos apreciar a ONU tem identificado com clareza que a tortura no Brasil não é exceção e em determinadas circunstâncias é uma norma. Que sua prática está generalizada nos corpos repressivos e que seu funcionamento conta com o círculo de impunidade que lhe outorga o Estado. A atividade do Subcomitê das Nações Unidas sobre Prevenção da Tortura (STP) no Brasil e sua denúncia sobre a assiduidade e frequência deste flagelo era uma tarefa que correspondia à Justiça brasileira. É ela também a que deveria ter quebrado o círculo de impunidade dessa prática perversa. Mas, não contamos com indícios que permitam ter certo otimismo sobre uma hipotética intervenção judicial para deter a tortura institucionalizada.

Como os negros são ampla maioria nos cárceres e os mais afetados pelas operações policiais, são também as vítimas principais da tortura. As restrições aos seus direitos impostas pelo racismo, os colocam também como os mais abatidos pela tortura. Racismo e tortura se autoalimentam gerando um gravíssimo problema de Direitos Humanos que participa como um componente imprescindível do Terrorismo de Estado para manter submergidos na desigualdade, a miséria e amedrontados a um alto percentual de brasileiros. Um passo imprescindível para terminar com a tortura é a extinção das polícias militares, que são as que mais exercem esta perversão inumana. Uma medida já aconselhada pela ONU ao Brasil em 2012 e ignorada pelo governo do PT.

Só um forte protesto social, com apoio dos meios de comunicação independentes que não atuem em cumplicidade com o Estado racista e torturador, pode extinguir as nefastas polícias militares e deter a tortura sistemática e seu círculo de impunidade.

Versão em português: Raul Fitipaldi, para Desacato.info

Imagem tomada de: carceraria.org.br

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