ONU lança documentário ‘Guarani e Kaiowá: pelo direito de viver no Tekoha’ (lugar onde se é)

Em 2017, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas completa 10 anos. Este marco relembra a importância dos povos indígenas na formação e riqueza da sociedade e como eles são ameaçados. No Brasil, no ano de 1500, a população de indígenas era de 8 milhões; hoje, em 2017, eles são cerca de 900 mil.

No Mato Grosso do Sul, centro-oeste do país, a situação territorial é dramática e provoca uma série de abusos de direitos humanos, que afetam principalmente os guarani e kaiowá.

No Brasil, no ano de 1500, a população de indígenas era de 8 milhões; hoje, em 2017, eles são cerca de 900 mil. De norte a sul do país, os mais de 300 grupos indígenas convivem com perseguições, remoções e violações.

Para contar um pouco sobre a situação dessas populações, o Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio) visitou a Reserva Indígena de Dourados e diversas aldeias do estado de Mato Grosso do Sul. Foram mais de mil quilômetros percorridos durante cinco dias para a produção do documentário “Guarani e Kaiowá: Pelo direito de viver no Tekoha”. O filme foi lançado nesta terça-feira (12) na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro.

No ano passado, algumas dessas aldeias foram visitadas pela relatora especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenasVictoria Tauli-Corpuz. Em suas considerações ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em GenebraVictoriaafirmou que os guarani e kaiowá sofrem um verdadeiro “etnocídio”.

“Desde o início do século XX, a política do Estado brasileiro foi de transformação do índio brasileiro em cidadão pobre. Esse processo de pauperização passava pela retirada de seu maior bem, que é a terra. Neste período, o governo criou oito reservaspara onde, de 1910 a 1960, ele transferiu (removeu à força) os indígenas de suas aldeias para as reservas”, contou ao UNIC Rio Neimar Machado, coordenador da licenciatura indígena na Faculdade Intercultural Indígena, instituição sediada em Dourados.

Após a Guerra do Paraguai (1864-1870), o território indígena no estado foi tomado por frentes de exploração como erva-mate e cana-de-açúcar. Atualmente, a produção de grãos (trigo, soja, aveia) ocupa, junto com a pecuária, a maior parte do território do Mato Grosso do Sul.

Dos 35 milhões de hectares, 23 milhões são dedicados à pecuária. Já as áreas efetivamente ocupadas pelos guarani e kaiowá – segundo maior povo indígena do Brasil segundo dados de 2010 do IBGE – não chega a 65 mil hectares, menos de 0,02 do território do Estado.

Relatórios preliminares de identificação territorial da Fundação Nacional do Índio(FUNAI) apontam que as áreas reivindicadas pelos guarani e kaiowá somam-se cerca de 700 mil hectares, em áreas não contínuas, o que representa 2% do território do Mato Grosso do Sul. A demarcação definitiva destas áreas resultaria na diminuição da violência interna que prevalece nas reservas e que vitimaram mais de 450 homicídios e 700 suicídios nos últimos 16 anos.

Os indígenas guarani na América do Sul somam 285 mil pessoas e estão nesta região há mais de dois mil anos. Trata-se de uma área ancestral que abrange parte do Brasil (com população de 85.255 de guarani), Bolívia (83.019), Paraguai (61.701) e Argentina (54,825), subdivididos em subgrupos em cada país. No Brasil, temos a presença dos mbya nas regiões Sudeste e Sul, os Ñandeva (guarani) nas regiões SulCentro-oeste e os kaiowá, maior subgrupo na região Centro-oeste.

Mais de 95% dos guarani e kaiowá estão concentrados no estado do Mato Grosso do Sul. O surpreendente é que cerca de 80% estão fora de seus tekoha – “lugar onde se é”, definição de terra indígena para os guarani e kaiowá.

Ou seja, estão em locais criados pelo governo como a Reserva Indígena de Dourados, que recentemente completou 100 anos e que abriga mais de 16 mil habitantes em 3 mil hectares. Ela é considerada a maior área de confinamento indígena do mundo.

Quase 70 anos depois, dona Alda conta como a vida na reserva foi sufocando os indígenas.

“Antes, achávamos que sofríamos aqui, mas, pelo menos, tínhamos caça, rio, plantas, comida e mais espaço. Hoje, não temos como plantar nossos alimentos, temos a nossa água envenenada… é a terra que dá saúde para o índio, que dá trabalho, dá sustento. A aldeia é o nosso lar porque foi lá que enterramos os umbigos de nossos tataravós”, disse Alda de Oliveira, acrescentando que os lugares criados pelo Estado não permitem ao indígena viver plenamente de acordo com suas tradições.

O lamento de Alda vai além da perda do espaço. Ela fala sobre a descaracterização da cultura, a destruição da identidade e a ausência de perspectivas. Esse cenário está relacionado a uma estatística desastrosa: entre 2000 e 2015, mais de 750 guarani e kaiowá cometeram suicídio. Ameaças, perseguições, remoções de sua terra estão entre as motivações.

Direito a terra: um dos artigos fundamentais da Declaração da ONU

Em 2007, a Declaração dos Povos Indígenas foi aprovada manifestando preocupação com o fato de essas populações terem sofrido injustiças históricas como resultado da colonização e da subtração de suas terras.

O artigo 10 da Declaração diz que nenhum povo indígena será removido à força de sua terra. Esse direito ainda é ignorado em diferentes partes do mundo e, no Mato Grosso do Sul, é a causa principal de um conflito que precisa ter fim. No estado, onde o embate com o agronegócio pela posse do território é uma realidade, quase 400 guarani e kaiowá foram mortos nos últimos 12 anos.

Damiana Cavanha, despejada de Apyka’i, teve nove familiares assassinados. Durante visita à família de Damiana, que vive à beira da estrada BR-463, o filho mais velho nos mostrou um projétil que havia recolhido no quintal três dias antes.

“Essa bala estava aqui na porta de casa. Eles atiram para amedrontar a gente. Eu vou guardar isso aqui e mostrar em Brasília”, contou Nivaldo. Durante a nossa entrevista, do outro lado da rodovia, dois homens observavam a nossa equipe dentro de um carro branco.

O artigo 26 da Declaração diz que os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que ocupam e possuem. Na tentativa de recuperar terras onde seus bisavós e avós viviam, eles organizam retomadas – uma ação autônoma dos guarani e kaiowá pela posse de suas terras tradicionais. Em Ypoi, conversamos com indígenas que tiveram familiares assassinados durante a retomada de 2009.

“Nós voltamos para uma terra de onde fomos expulsos há 70 anos. Foram três dias de tiroteio. Meu filho, Genivaldo Vera, foi encontrado morto. Meu sobrinho, Rolindo, continua desaparecido”, lembrou Bernardo Vera.

Em Marangatu, próximo à fronteira com o Paraguai, várias lideranças foram assassinadas. O túmulo de Marçal de Sousa, morto em 1983 com cinco tiros, relembra essa tragédia. Marçal foi defensor incansável e um dos líderes precursores das lutas dos guaranis pela recuperação e pelo reconhecimento de seus territórios ancestrais.

Marçal tombou aqui e muitos outros também. A história aqui, em Marangatu, tem sido muito triste. Os órgãos competentes precisam fazer a demarcação desse território. O estudo já foi feito, mas ainda não deram a posse oficial para os indígenas retornarem”, disse Voninho Benites, defensor de Direitos Humanos dos Indígenas.

Demarcação é o pilar dos conflitos nas aldeias

Atualmente, em todo o Brasil, há 462 terras indígenas regularizadas abrangendo 12% do território nacional. O processo de reconhecimento é uma longa estrada: mais de 600 pedidos estão sem providência na FUNAI.

No Mato Grosso do Sul mesmo, 7 grupos de trabalho tentam há 10 anos avançar nas demarcações efetivas das terras guarani e kaiowá. Apesar dos avanços em algumas áreas, estas demarcações não resultaram na posse efetiva da comunidade – isto é, apesar de já terem sido homologadas pelo Estado brasileiro, estas comunidades não usufruem destas áreas que seguem ocupadas por não indígenas.

“O Brasil gosta de dizer que demarcou muitas terras, mas 98% dessas terras estão em regiões da Amazônia, onde não há o embate direto com o agronegócio. Na Amazônia, o que temos é um processo de demarcação efetivamente. No centro-sul temos um processo de devolução de territórios, que não avança e, quando avança, devolve terras descaracterizadas, sem que os indígenas tenham como se manter”, explicou Marco Antonio Delfino, procurador da República.

No dia 13 de setembro – data dos 10 anos da Declaração –, uma grande mobilização nacional vai pedir à Advocacia-Geral da União a revogação do parecer considerado pelo movimento indígena como “anti-demarcações”.

Na prática, o parecer quer aplicar a toda administração pública as chamadas “condicionantes” do caso Raposa Serra do Sol que, entre outras medidas, prevê a restrição dos direitos indígenas ao chamado “marco” temporal para a demarcação de terras indígenas e a vedação da ampliação das terras indígenas, ainda que estas não cumpram com sua função constitucional.

Esta decisão do governo conflita com a do Supremo Tribunal Federal, que em diversos julgamentos manifestou que as “condicionantes” só se aplicam ao caso da Raposa e não devem servir de parâmetros para outras áreas indígenas objeto de demarcação.

Reconhecimento das terras indígenas comprometido com corte de verba

Criada pelo governo em 1967, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) tem, entre seus objetivos, coordenar e executar políticas indigenistas do Estado, protegendo e promovendo os direitos desses povos.

No último ano, o corte de cerca de 50% de seu orçamento vem impossibilitando o trabalho da instituição, que também apoia o programa de proteção aos indígenasque sofrem ameaças, gerenciado pelo governo federal.

“O corte prejudica e cria um cenário de inoperância do órgão, apesar de seus servidores terem uma intenção muito grande em executar a sua missão. Ainda carece o Estado brasileiro entender a necessidade de preservação dos povos indígenas. Atualmente, temos um cenário de ataques aos povos indígenas que precisa ser revisto”, lembrou o coordenador regional da FUNAIJosé Victor Dellanora.

Espaço de debate para conscientizar

Em 2012, após 20 anos de luta dos indígenas, foi criada a Faculdade Intercultural Indígena. A licenciatura, que funciona dentro da Universidade Federal da Grande Dourados, articula professores e lideranças indígenas com profissionais de educação, principalmente a partir do “Teko Arandú”, licenciatura voltada para a formação dos guarani e kaiowá.

Neimar Machado, coordenador do curso, destaca que, nos anos 1990, não havia mais do que 50 professores indígenas no estado. Hoje, há cerca 800 formados em um ambiente acadêmico que prioriza os saberes indígenas e estimula debates acerca de assuntos como a necessidade da demarcação de terra.

“Desses, quase 500 são professores guarani e kaiowá. Nesse caminho de mais de 20 anos, eles foram lutando para que tivesse escolas nas aldeias e hoje sabemos que 90% dos professores das aldeias são indígenas”, completa o professor.

Élida Machado é uma dessas professoras. Vivendo em Marangatu, terra que guarda a memória do ativista Marçal de Sousa, ela diz que o papel do professor indígena é de líder, de um orientador que traz para a comunidade a forma de lutar.

“Tentamos trazer a criança para a questão indígena porque não podemos desistir, não podemos parar, temos que estar incluídos na globalização, senão não somos lembrados. Estamos sempre lutando e gritando por socorro, dizendo que estamos aqui!”

 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

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