Onde fica (ou onde se esconde) o Caribe no imaginário latino-americano

Por João Paulo Charleaux.

O noticiário brasileiro é inundado de relatos quando furacões e tempestades atingem a costa dos EUA e obrigam americanos a estocar alimentos dentro de casa. Mas o mesmo tipo de fenômeno não desperta tanta atenção quando inevitavelmente passa por dezenas de ilhas do Caribe pelo caminho, às vezes com consequências humanas mais graves.

Há uma espécie de buraco no mapa que os brasileiros fazem das Américas. Dentro dessa brecha geográfica estão quase 20 ilhas. Apesar de praticamente ignoradas, muitas respondem por momentos decisivos da história recente: como a Revolução Cubana, que começou a deslocar o eixo da Guerra Fria da tundra soviética para as praias do Caribe, a partir de 1959, ou, antes disso, a primeira revolução vitoriosa de escravos negros contra uma potência colonial, como no caso dos haitianos contra os franceses, no fim do século 18.

É por essa disjunção da geografia e da memória que o escritor porto-riquenho Arcadio Díaz-Quiñones batizou seu livro de “A Memória Rota”. A série de “ensaios de cultura e política” escritos em 1993 pelo professor da Universidade de Princeton, nos EUA, está saindo em português, no Brasil, pela Companhia das Letras.

O Nexo conversou com Díaz-Quiñones em sua passagem por São Paulo sobre a presença e a ausência do Caribe no imaginário brasileiro e latino-americano.

O Brasil é percebido como um país bem apartado da América Latina. Isso é ainda mais radical em relação à América Central e ao Caribe – e não por uma questão de distância geográfica, pois até os EUA e o Canadá, que estão ainda mais distantes, nos parecem mais próximos. Por que isso é assim?

ARCADIO DÍAZ-QUIÑONES Eu me fiz essa pergunta muitas vezes. Não apenas o Brasil, mas a América Latina toda não olha para o Caribe. A região foi o começo do chamado descobrimento da América e da colonização. É a região na qual se situa o Haiti, com a primeira revolução de independência feita por escravos negros, é a região na qual ocorreu também a Revolução Cubana. Enfim, haveria muitas razões para que essa fosse uma região muito mais conhecida, porém, não se conhece.

Penso que isso tem a ver com o triunfo da categoria de ‘Estado-nação’, depois da era dos impérios. O Caribe é formado por pequenos países. E nem todos eles chegaram a ser Estados-nações depois dos processos de independência. Martinica, Guadalupe, Trinidade e Tobago, Porto Rico e Jamaica, por exemplo, são pequenas ilhas, sendo algumas delas departamentos ultramarinos franceses ou, como no caso de Porto Rico, um ‘Estado-livre-associado’ aos EUA. Não se sabe bem o que seja isso e, portanto, caímos numa zona na qual inexistem categorias claras. Essa é a primeira razão possível.

A outra razão é a fragmentação imperial. A região começou como parte do império espanhol, mas depois se fragmenta entre possessões de todos os impérios. Não só a Espanha reteve possessões, mas também a França, o Reino Unido, a Holanda e até a Alemanha. Então há uma fragmentação política e também linguística. Isso é muito importante para a América Latina, onde o espanhol e o português são os idiomas. Por isso, muitos não entendem que se possa pertencer a uma zona do mundo realmente multilinguística e multiracial, na qual está o francês, o creole, o papiamento, o inglês … Isso torna muito difícil identificar. É muito complexo.

Como é a relação inversa? Como os centro-americanos e caribenhos veem o Brasil?

ARCADIO DÍAZ-QUIÑONES O Brasil existe mais agora, por algumas razões. Existe midiaticamente, no mundo da literatura, do cinema, dos esportes. Quando eu era estudante universitário, o Brasil só existia para certos setores da esquerda, em grande medida pela música: Caetano Veloso, Maria Bethânia e Chico Buarque. O salsero Tito Curet Alonso [músico porto-riquenho que viveu de 1965 a 2003, autor de mais de 2 mil canções] conhecia muito bem a música brasileira. Além deles, Paulo Freire [pedagogo pernambucano] influenciou muito alguns projetos educativos e políticos e tem muito a ver com a crítica da ditadura.

Apesar dessa influência que o Brasil teve para a minha geração, não se estuda o Brasil como se estuda a Espanha e a língua espanhola, ou como se estuda o Chile ou a Argentina na Universidade de Porto Rico. O Brasil é muito menos estudado, apesar de sua magnitude. Há um preconceito institucional de língua espanhola.

O que fica, portanto, é um tipo de conhecimento superficial, mesmo que haja uma real admiração pela criatividade e, mais recentemente, pelos eventos políticos ligados ao impeachment [da ex-presidente Dilma Rousseff, ocorrido na noite anterior a esta entrevista]. Há muita curiosidade neste momento sobre o que pode acontecer.

A região do Caribe e da América Central conviveu muito de perto com dois países completamente antagônicos na Guerra Fria: Cuba e EUA. Como a região se acomodou no meio desses dois polos?

ARCADIO DÍAZ-QUIÑONES É de fato uma região que vive entre impérios. Primeiro, entre a tradição espanhola e a nova dominação norte-americana, a partir de 1898 [ano em que a Espanha perdeu o domínio de Cuba e de Porto Rico para os EUA], seguida pela dominação militar americana e a instalação de bases navais que são muito fortes em toda a região.

Depois, tivemos experiências de ditaduras terríveis e isso explica em parte o fascínio que a Revolução Cubana provocou, sobretudo em seus dez primeiros anos. Cuba não é o único projeto de revolução. Mas foi o triunfante.

A Revolução Cubana marcou toda uma geração, pois representava a possibilidade de uma revolução democrática. Ela foi vista como uma maneira de reinserir o Caribe no mundo, que não fosse pela via da dominação capitalista e militarista americana da Guerra Fria e que não fosse também por meio de ditaduras sangrentas como a de [Rafael] Trujillo [ditador que governou a República Dominicana entre 1930 e 1961].

No início, a revolução [cubana] tem um projeto ‘caribenhista’. Isso pode ser percebido em suas publicações, nos convites que eram feitos aos escritores que circularam por Cuba à época. Mas há uma mudança radical em seguida, com a sovietização da Revolução Cubana.

Existe um marco preciso dessa mudança?

ARCADIO DÍAZ-QUIÑONES Depois da chamada Crise dos Mísseis [1962] isso fica muito claro. E, em seguida, quando se impõe a política da Safra dos 10 milhões [plano do governo cubano de, em 1970, mobilizar as Forças Armadas e converter grandes extensões de terra para a plantação de cana, visando colher 10 milhões de toneladas de açúcar, assim como fazia o governo soviético em relação a outras culturas agrícolas na URSS].

Dessa forma, a revolução abandona a reforma agrária e começa a receber subsídios da URSS. O governo cubano começa então a enviar todos os jovens promissores para estudar na URSS e na chamada Europa Oriental. Aí é que começa a haver uma mudança muito grande e um distanciamento da revolução em relação a muitos de nós, caribenhos. A repressão terrível, por exemplo, dos homossexuais, da cultura gay, começa nesse momento. Alguns sustentam que essa política repressora contra os homossexuais também foi favorecida pela sovietização.

No início, em Cuba, conviviam a esquerda católica, a esquerda comunista e uma esquerda não comunista. É importante dizer isso: no Caribe há uma esquerda não comunista, que, no discurso da Guerra Fria foi devorada, esquecida e manipulada. Nos primeiros anos da Revolução Cubana, essa esquerda não comunista era protagonista também, mas em seguida isso se tornou impossível. O próprio Partido Comunista em Cuba se sovietiza e isso foi trágico pois essa revolução acabou estancada na Guerra Fria e tomou um giro inesperado na direção da URSS. Isso não destruiu totalmente seu projeto ou tirou todo o atrativo, mas distanciou.

E como entram os EUA como polo de fascínio para a região, em outro extremo?

ARCADIO DÍAZ-QUIÑONES É aí que tem início uma aproximação na direção dos movimentos de esquerda norte-americanos, que são muito interessantes e muito criativos, com toda luta por direitos civis, a contracultura e a luta contra a Guerra do Vietnã. Dos Black Panthers aos Young Lords [grupo ligado à comunidade porto-riquenha nos EUA que defendia a luta pelos direitos civis, inclusive com o uso de armas], passando pela música de Bob Dylan, o rock, o movimento gay, o movimento feminista, nasce aí muito do que conhecemos hoje. E nasce com uma riqueza extraordinária.

O Caribe fica, portanto, entre duas possibilidade e duas utopias fortes: entre a utopia que foi a Revolução Cubana e as múltiplas utopias dos movimentos americanos, utopias muito sedutoras e enormemente criativas.

Fonte:https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2016/09/04/Onde-fica-ou-onde-se-esconde-o-Caribe-no-imagin%C3%A1rio-latino-americano.

Fonte da foto de capa: Alexandre Meneghini/Reuters.

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