Oito em cada dez mulheres que abortam já têm filhos

Conheça a história de mulheres que já eram mães e decidiram interromper a gravidez. STF promove a partir desta sexta-feira 3 audiência pública sobre o tema.

Foto: Edu Guimarães

Por Aline Melo.

O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia nesta sexta-feira 3 uma série de duas audiências públicas que têm como tema a descriminalização do aborto. O debate em torno do assunto deve marcar um novo momento sobre a discussão da interrupção da gravidez, realidade da vida privada das mulheres, mas ainda cercada de moralismo na vida pública.

Um dos mitos em torno do assunto é que recorrem ao aborto mulheres que engravidam fora de relacionamentos estáveis ou que ainda não têm filhos. A Pesquisa Nacional de Aborto, realizada pela Anis – Instituto de Bioética e Universidade de Brasília, porém, mostra que 78% das mulheres que interrompem voluntariamente a gestação – ou quase oito em cada dez –  já têm filhos. O mesmo estudo aponta que 65% delas são casadas ou estão em relacionamentos estáveis.

O estudo, coordenado por Débora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, mostra que mais de meio milhão de mulheres realizam aborto inseguro todos os anos, quase uma por minuto. Entre 2006 e 2015, dado mais recente, o Brasil registrou 770 óbitos por aborto no SUS (Sistema Único de Saúde).

“A mulher que faz o aborto é nossa vizinha, parente, colega de trabalho, Impossível não ter várias conhecidas que recorreram ao aborto inseguro”, aponta a doutora em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora na área de direitos reprodutivos femininos, Deborah Delage.

A pesquisadora aponta, ainda, que o debate atual sobre a descriminalização é raso e os opositores da legalização recorrem a argumentos que desconsideram o direito ao corpo como direito humano da mulher. “Existe unanimidade em entender, nos meios onde ocorrem as pesquisas, que o aborto inseguro é um risco enorme à saúde e à vida das mulheres. Afirmo que criminalizar o aborto é sentenciar mulheres à morte”.

A Pesquisa Nacional de Aborto mostra que entre as mulheres que abortam, 56% são católicas e 25% evangélicas ou protestantes. Mas se para algumas mulheres pesa a formação religiosa, para todas há o risco de serem criminalizadas.

Advogada e integrante da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), Ana Lucia Keuneucke esclarece que, de acordo com o código penal brasileiro, a pena para a mulher que provocar aborto em si mesma varia de um a três anos de prisão. “A questão do aborto inseguro é um problema de saúde pública no Brasil, com absurdo índice de mortalidade materna, despesas aos cofres públicos em decorrência tanto das mortalidades, como das complicações dos abortos inseguros no SUS”, resume.

Além das clínicas que oferecem o procedimento, muitas mulheres recorrem ao misoprostol, medicamento originalmente indicado para úlceras, usado para fins obstétricos desde a década de 1990, mas sua venda é proibida. O custo pode ser dez vezes menor que o procedimento em uma clínica.

“Ele amolece o colo do útero e é indicado para indução de parto ou abortos seguros em ambiente hospitalar, normalmente até 12 semanas de gestação”, explica o ginecologista obstetra e coordenador da Global Doctor for Choice (Rede Médica pelo Direito de Decidir), Cristião Rosas.

O médico destaca que, apesar do medo de algumas mulheres serem denunciadas, o código de ética pune o profissional que não respeitar o sigilo da paciente. “Sabemos que ocorre, porque em toda área existem maus profissionais, ou ao menos, desinformados”. Rosas salienta que o medo de recorrer ao hospital no caso de uma situação adversa após o uso de misoprostol retarda o atendimento médico e pode culminar na morte materna.

Há ainda os casos de malformações graves do feto, mas sem amparo para o aborto legal. A clandestinidade também pode ser uma saída. A advogada Ana Lucia explica que com um diagnóstico de anencefalia, ou seja, quando o feto não tem cérebro, a mulher pode se submeter ao aborto sem autorização judicial. No caso de malformação, não.

“A gestante pode entrar com uma medida cautelar, que em tese o juiz teria cinco dias para responder. Mas se o pedido é encaminhado ao Ministério Público, pode levar de 20 a 30 dias para uma decisão. Entendo isso como tortura e rompimento de vários tratados internacionais que protegem as mulheres de violências”.

Deborah Delage pondera que o maior impeditivo para a descriminalização e legalização do aborto é estrutural. “É a percepção da mulher como sujeito de menos direitos, submetida a um intenso controle corporal pela sociedade. Há também um impeditivo conjuntural: um estado sob golpe, com posições que apoiam redução de direitos sendo reforçadas”.

Ana Lucia completa que a proibição do aborto perpassa a questão de gênero, alcançando recorte racial e socioeconômico no Brasil. “A mulher que tem acesso ao aborto seguro – e que custa caro – faz o procedimento sem que tenha consequências físicas de mortalidade e complicações. Quem não tem acesso, são as mulheres que morrem: as pretas, pobres e periféricas”.

A reportagem de CartaCapital conversou com mulheres que já eram mães e por razões distintas decidiram interromper a gravidez. Conheça suas histórias.

Claudia*: a terceira gravidez não estava nos planos

Claudia, moradora de Santo André, no ABC Paulista, interrompeu a gestação em 2017. Professora, casada e mãe de dois filhos, a terceira gravidez não estava nos planos. “Logo nos primeiros dias de atraso da menstruação confirmei e já realizei o procedimento”.

O companheiro a apoiou. A professora relata que o sentimento final foi de alívio, mas que existe grande peso psicológico pela decisão. “É importante falar isso. As pessoas que usam o argumento de que não pode descriminalizar porque as mulheres não evitariam a gravidez não pensam no impacto emocional”.

Claudia passou por um procedimento rápido, em uma clínica em São Paulo, ao custo de 3,5 mil reais, parcelado em três vezes no cartão de crédito. “Achei caro, mas é criminalizado, quem se arrisca a fazer cobra o que quiser e sei que muitas mulheres não têm esse recurso”. Após a experiência, os cuidados do casal com os métodos contraceptivos foram redobrados. “Não quero nunca mais ter que passar por isso”.

A professora, que não é religiosa, disse que nunca se imaginou passando por um aborto e que a necessidade de se submeter ao procedimento aumentou a certeza de que é um direito. “Senti na pele e fiquei mais a favor da descriminalização. Sempre encarei como medida de saúde pública. Hoje em dia, vendo os relatos de mulheres que foram forçadas a ter os filhos mesmo não querendo, por causa da criminalização ou falta de recursos, me posicionei cada vez mais a favor”.

Maria*: grávida durante preparação para vasectomia do marido

Professora e moradora do interior de São Paulo, Maria, 31, interrompeu a gestação em abril de 2018. O marido se preparava para a vasectomia quando a gravidez ocorreu.

Com dois filhos pequenos, o casal viu no aborto a única saída para aquele momento. “Moramos em uma cidade sem rede de apoio, com duas crianças que já me exigem bastante, com a casa, o trabalho. Um terceiro filho demandaria uma energia que não sei se tenho“, afirma.

O procedimento foi realizado em São Paulo por 4 mil reais. “Meu marido pagou. Sozinha, não sei se teria feito, porque teria que tomar remédio e ficar em casa, não sei se teria coragem”, relembra. “Fiz bem no começo da gestação, essa era uma questão para mim, não podia esperar muito tempo”.

Maria chegou a contar para algumas pessoas de seu convívio religioso sobre a decisão. “Não me senti julgada, mas ainda me pego pensando nas consequências dessa atitude do ponto de vista religioso.”

Alice*: “Sentimento era de alívio”

Para a técnica de informática Alice, 23, realizar o aborto em dezembro de 2017 não trouxe conflito, já que entende que esse é um direito das mulheres. “Sou feminista e acredito que a mulher tem que ter autonomia sobre seu corpo”.

Mãe de um bebê então com apenas 7 meses, a moradora de Ribeirão Pires, no ABC Paulista, recorreu a medicamentos. “Me informei com algumas pessoas e estava na minha casa quando tomei os comprimidos”, relembra.

O companheiro, de quem atualmente está separada, apoiou a decisão, mas não ficou a seu lado esperando os efeitos da medicação. Alice foi acompanhada pela irmã, enquanto sua mãe cuidava da bebê. “Senti muita dor, mas não precisei ir ao hospital, que era meu medo”.

Alice pagou 500 reais pelo medicamento. Ao final, o sentimento era de alívio. “A todo momento tinha certeza que era o que queria e me senti aliviada por ter feito. Não estava e não estou preparada para ser mãe novamente”.

Sonia*: “Meu filho era incompatível com a vida”

A jornalista Sonia, 40, moradora de Colatina, no Espírito Santo, recorreu a um aborto em 2012. Casada, ela estava na décima segunda semana da primeira gestação, planejada, quando soube que o feto apresentava diversas malformações. “Passei por muitos médicos que me asseguraram que toda aquela situação era incompatível com a vida após o nascimento”.

Ainda que a lei brasileira permita o aborto mediante autorização judicial, Sonia recorreu ao procedimento clandestino. “Estava na dependência do laudo que assegurasse essa situação e do entendimento pessoal de um juiz”.

Com o tempo passando e exames com resultados inconclusivos, a decisão foi pela interrupção. “Pesquisei e vi que poderia sofrer um aborto espontâneo a qualquer momento, ou ainda que meu filho poderia nascer e morrer logo depois. Não queria passar por tudo isso. Já estava vivendo um desgaste emocional muito grande”.

Para Sonia, se o aborto no Brasil fosse descriminalizado e legalizado, todo o sofrimento enfrentado após o diagnóstico de malformação de seu feto teria sido amenizado. “Não precisaria passar por tantos exames e possivelmente ir para uma esfera legal e ser julgada. Eu decido se quero passar pelo procedimento ou não”.

A jornalista lembra, ainda, que caso os exames e a decisão judicial demorassem, poderia ter sido obrigada a passar por um parto induzido. “Achei melhor não esperar. Sou eu, é o meu bebê, eu decido a hora que quero interromper”. Sonia engravidou novamente três meses após o procedimento e hoje é mãe de uma criança de cinco anos.

*Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar suas identidades

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