Ocupado de esperança!

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Por Rafael Siqueira de Guimarães, Ilhéus, para Desacato.info.

Soube na sexta-feira que o IFBA, Campus Ilhéus, estava iniciando uma ocupação. Preocupei-me, porque o início destes movimentos dentro de instituições costuma ser seguido por alguma repressão. No caminho para o trabalho, passei para ver qual era a situação.

Vi meninas e meninos do lado de dentro, portões fechados. Não podiam usar os banheiros e nem a copa, relataram. Não me permitiram entrar. Fui até um mercadinho vizinho buscar algumas frutas e água, avisei outras pessoas acerca do que estava acontecendo, logo a notícia foi se espalhando. Mais tarde, foram até o campus outros colegas que auxiliaram na negociação e algum bom senso prevaleceu. A ocupação foi, enfim, reconhecida como legítima.

Os poderes hegemônicos, instituídos em organizações burocráticas e administrativas, se estruturam com estratégias múltiplas, como a desqualificação da capacidade intelectual das pessoas ocupantes (“estas crianças não protagonizam nada sozinhas, existem docentes “por trás””), a pretensa segurança das pessoas e do patrimônio público (“imagine se vem alguém estranho à escola aqui, precisamos deixar os portões fechados”), o cerceamento dos espaços sempre ocupados por todas as pessoas numa instituição pública (“podem não deixar o espaço do banheiro e da copa limpos”). Estas estratégias, mesmo que tenham uma pretensa busca pelo bem estar, Foucault nos ensina que fazem parte do mote da sociedade disciplinar. Mesmo que não sejam efetivamente seguidas de violência física, são violentas porque causam danos à integridade física e psicológica das pessoas.

Quando, de repente, meninas e meninos passam a questionar as políticas governamentais para o currículo do Ensino Médio ou mesmo para o financiamento em educação, também deixam nítido que esta escola está se omitindo no processo, que há certa conivência e se desestabiliza o instituído. Percebe a gestão que não consegue lidar com o novo e percebemos, nós, docentes, que muitas vezes falhamos no posicionamento.

Observei meninas e meninos com uma organização incrível ali. Muito capazes de discutirem frente a frente com a gestão, pautadas/os por argumentos, construídos por muita leitura de realidade e de conjuntura. Mostram que aprenderam a realizar cálculos sobre os impactos das políticas, demonstram fluidez na construção argumentativa, demonstram que compreendem a conjuntura política e social em que estão inseridas estas políticas e o que elas causarão às pessoas da comunidade. Isso também foi trabalho desta escola, que promoveu o debate sincero nesses anos escolares vividos por essas pessoas, mesmo que seja muito difícil e precário o espaço escolar.

Isso só foi possível porque esta é uma escola pública, universal e gratuita, onde o debate é franco, onde se vê garantido o contraditório. É na prática do “chão da escola” que se constroem os saberes e os fazeres, no interior desse currículo que são todas as práticas escolares. Nesse currículo, há, também, estas práticas cerceadoras que representam as táticas do poder hegemônico, não permitindo que as coisas “saiam do controle”.

O que vi e senti na ocupação do IFBA de Ilhéus foi esperança. Esperança destas meninas e destes meninos por um futuro que não venha podar seus itinerários de vida. Vi uma construção coletiva de programação, vi a preocupação com o patrimônio público, com resoluções decididas em Assembleia, com participação de todas e todos. Não vi decisões arbitrárias ou necessidade de “uma” liderança.

É bonito de ver, numa região como esta, o Sul da Bahia, marcada pelas práticas coronelistas, um movimento auto-organizado que me ensina o quanto nós, velhos doutores, perdemos a nossa alegria, a nossa solidariedade, a nossa disposição em estar-junto. Nosso interesse pelo coletivo está muito mais ligado a interesses de mercado, de construirmos projetos fortes, com a chamada “excelência” ou com o “reconhecimento” dos pares. Para mim, é importante estar com esta garotada, não só para fortalecer o movimento delas e deles, como aliado e não protagonista, mas porque aprendo a ser uma pessoa melhor, aprendo o quanto minhas práticas, como professor, muitas vezes, reproduzem as verdades hegemônicas, porque atravessadas por estas.

Hoje, voltei lá para deixar emprestado um fogão elétrico, a fim de que elas e eles possam cozinhar alguma coisa, e também para saber como estão. Soube, por uma colega, que houve um encontro com familiares hoje mais cedo, que esta e outras colegas por lá estiveram, que os encontros dessa garotada com a comunidade externa têm sido potentes. Estavam todas e todos com orgulho da sua organização: vi uma escola viva, limpa, organizada, fiquei surpreso com a quantidade de comida que tinham, era um domingo à noite, mas não baixaram guarda. Uma estudante me relatou ter chorado a noite toda porque nunca havia pensado o quanto seria difícil ficar longe de casa e ter tanta responsabilidade, mas que sabe que fizeram a coisa certa, pois se trata de um desmonte da educação para esta e para as próximas gerações, e me disse: “o IFBA é nosso”.

Amanhã, irão enfrentar a realidade de um dia letivo e, como as aulas ainda não foram suspensas por completo, realizarão uma Assembleia para deliberar sobre elas. Mas já decidiram: receberão todas e todos com estas tantas frutas que nem sempre têm por ali, haverá um belo café da manhã: solidário, fraterno, num espírito de encontro. Sorte e força amanhã para estas meninas e estes meninos! Força para esta ocupação!

Esperança, reXistência e Luta!

Rafael Siqueira de Guimarães é perfomer, psicólogo e doutor em Sociologia. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.

Foto da internet, enviada pelo autor do artigo.

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