Obscenidades e escárnio em Hilda Hilst

por Arthur Marchetto

Hilda Hilst lendo um de seus manuscritos. Imagem: Roberto de Biasi

“Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas” – Oscar Wilde.
“E quem olha se fode” – Lori Lamby.

Essas são as epígrafes que abrem O caderno rosa de Lori Lamby, um dos títulos que compõe a trilogia erótica (ou obscena) de Hilda Hilst. Escrito em forma de diário, o livro conta as experiências sexuais de uma garota de oito anos, Lori Lamby, que vende seu corpo por causa dos pais. O choque da premissa salta aos olhos, mas, apesar do impacto inicial que a pedofilia provoca, o livro vai além. Tece fortes críticas ao mercado editorial, apresenta as frustrações e a força linguística de Hilda e brinca até mesmo com a obscenidade nos olhos do leitor por meio do desfecho desse personagem-narrador.

O percurso literário de Hilda Hilst é interessante. A sua produção literária sobre amor/sexo parte da dedicação lírica inspirada nas cantigas medievais, como em Roteiro do Silêncio, e chega na trilogia destacada acima, composta por O caderno rosa de Lori LambyContos d’escárnio. Textos grotescos Cartas de um sedutor. Segundo Mechthild Blumberg, em seu artigo “Sexualidade e Riso: a trilogia obscena de Hilda Hilst”, esses livros representam os “mais desviantes comportamentos sexuais, combinando sarcasmo, erotismo e humor, como resposta grotesca à absoluta perda de esperança e de sentido com relação ao mundo e ao gênero humano”.

O desalento da escritora surge de uma série de frustrações, como a angústia de ser pouco lida e as falhas em conseguir uma experiência legítima de contato com o divino – questões trabalhadas ao longo de toda sua obra. Dessa maneira, ela se apropriou dos estereótipos pornográficos como maneira de provocar e fazer um escárnio em relação à crueldade divina, que tolera o sofrimento humano, e à superficialidade humana, que só se preocupa com seu prazer. Como diz Blumberg, Hilda desbravou o campo do “desbocamento feminino”, ainda que não estivesse preocupada com questões de gênero.

É por conta dessa faceta de troça que a escritora defende a obscenidade no lugar da pornografia ao se referir à trilogia. Diferente do pornográfico, o obsceno está ligado às aversões estéticas, morais e vitais (em outras palavras, ao medonho, ao imoral e ao nojento). Como diz Mechtild, ainda que procure despertar o tesão do leitor, o sentimento é “na maioria das vezes contrariado pelo aspecto humorístico, grotesco ou antiestético das situações descritas”. É uma “estética do feio”, do grotesco, que relaciona o cômico com o medonho, chegando ao absurdo.

Dessa forma, Blumberg descreve que, “para se livrar do paroxismo da paixão como desejo de união (com o divino), Hilda leva a sexualidade até o obsceno, que vira motivo de riso (quando sátira), de depressão (quando grotesco) ou de revolta (quando blasfêmia)”.

No caso de O caderno rosa de Lori Lamby, as frustrações que Hilda sentiu ao longo da vida ficam pungentes na figura do pai de Lori Lamby, um escritor que não consegue ganhar dinheiro, apesar de ser considerado genial. Ao longo do livro, vemos o pai ficar cada vez mais desesperado ao ser obrigado pelo editor Lalau a escrever orgias, já que vendem, ao invés da literatura que corria em suas veias e era um fracasso. A derrota do personagem em sua busca da metafísica é a derrota de Hilda Hilst, que sofre com a falta de leitores e com a incapacidade de elevá-los e, por isso, entrega-se ao desenvolvimento da literatura obscena.

A derrota do personagem em sua busca da metafísica é a derrota de Hilda Hilst, que sofre com a falta de leitores e com a incapacidade de elevá-los e, por isso, entrega-se ao desenvolvimento da literatura obscena.

Essas duas pontas se conectam quando vemos o questionamento de Lori Lamby: “Por que será que não dão dinheiro pro papi que é tão gênio, e pra mim eles dão só dizendo que sou uma cachorrinha?”. Com sua trilogia, a escritora conta que tentou chocar, provocar novas sensações. É possível notar uma associação entre os clientes/leitores de Lori Lamby e os de Hilda Hilst – estão chocados com a situação extrema, mas são responsáveis pelo contexto.

Ao longo da narrativa, ela desenvolve essa ideia ao colocar o obsceno da situação nos olhos de quem lê. A narração de Lori é permeada por palavras infantis, aparentes erros de escrita e naturalidade. Ela apenas repete as coisas que o pai escreve. Dessa forma, a hipocrisia no contexto passa a ser formado pelo choque da prostituição de Lori Lamby e a naturalidade do livro pornográfico escrito pelo pai, protagonizado por uma garotinha, e suas inspirações, como a história de Corina, uma garota de quinze anos que transa com todos os homens de uma cidade – e com um jumento.

Enfim, Hilda Hilst também se vinga da impossibilidade de se conectar com o Divino por meio da linguagem. Ao escrever O caderno rosa de Lori Lamby, blasfema ao confundir a linguagem e o órgão – as duas “línguas”. Para a personagem Lori Lamby, a língua se torna o caminho para acessar o conhecimento, o reconhecimento e o prazer.

O CADERNO ROSA DE LORI LAMBY| Hilda Hilst

Editora: Biblioteca Azul;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Agosto, 2004.

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