O transporte em Florianópolis: mudando para não mudar

onibus

Por Elaine Tavares.

Desde que foi implantado, durante a gestão da prefeita Angela Amin, em agosto de 2003, o chamado “transporte integrado”, a vida de grande parte das pessoas que utilizam o transporte público na capital catarinense virou um verdeiro inferno. Aqueles que moram em bairros próximos ao centro raramente reclamam do sistema, uma vez que a fluência de ônibus é boa, com horários regulares entre 10 a 15 minutos no máximo. É assim para quem mora no Estreito, Coqueiros, Abraão e Itaguaçu, que não precisa fazer baldeação.

 Já para os que moram nos bairros mais afastados, o cotidiano é um suplício. Os veículos que saem do centro não sãos os mesmos que o usuário usa para chegar ao seu bairro. Em alguma parte do caminho, no geral, bem próximo de casa, a pessoa precisa descer no “terminal de integração” e pegar outro ônibus que, aí sim, vai levá-lo até em casa.  Nesse ínterim, o usuário precisa viver duas grandes batalhas: a de enfrentar as longas filas no terminal do Centro, sofrendo ônibus lotados, sem sistema de ar condicionado (muitos deles sequer têm janelas que abrem), passando por longas horas nos engarrafamentos, e, depois, viver a mesma situação no trajeto do terminal de integração até em casa. No geral, para as pessoas que vivem nos bairros mais distantes, o tempo dentro do sistema de transporte aumentou com a “desintegração” – que é como a população chama. Linhas que faziam o percurso em 40 minutos, como era o caso da do bairro Campeche, agora podem levar até duas horas. Um tempo absurdo se consideramos que é um trajeto de pouco mais de 30 quilômetros.

Não bastasse tudo isso, o sistema de integração “loteou” a cidade para determinadas empresas. Cada uma detém o monopólio de uma determinada região e, assim, o usuário é refém da empresa que faz o seu bairro. Não há opções. No terminal do Rio Tavares, se a pessoa perde o carro da hora cheia, por exemplo, terá de esperar 30 minutos até que tenha novo horário para o seu bairro. Muitas vezes a pessoa está a cinco minutos de casa e precisa ficar esperando. É um sistema gerador de estresse e doenças. Se formos considerar o período de férias, a situação fica ainda mais caótica. Esse ano, por exemplo,a prefeitura retirou os carros que fazem horários extras no horário de pico durante o ano letivo. O argumento é de que não há fluxo de estudantes. Mas, os tecnocratas não levam em consideração que o fluxo de turistas representa duas ou três vezes mais do que o número de estudantes. Então, os terminais ficam ainda mais insustentáveis. Gente demais, calor demais, preço das tarifas altos demais, estrutura de menos. Sem contar a falta de informação aos turistas que ficam feito barata tonta pelos corredores sem saber qual ônibus tomar.

 As lutas

Por conta de todos esses problemas que os milhares de usuários enfrentam no dia-a- dia muitas foram as lutas protagonizadas pelos estudantes, movimentos sociais e população em geral. A primeira delas, pós-integração, foi a batalha pela CPI dos transportes, junto à Câmara de Vereadores, comandada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Transporte que queria transparência na concessão dos terminais do  sistema integrado. Mesmo com mobilizações e abaixo-assinado, a Câmara se recusou a investigar. Mais tarde, vários dos terminais, que haviam custado milhares de reais aos cofres públicos, tiveram de ser desativados por absoluta falta de sentido.

Depois, em 2004, veio a Revolta da Catraca, quando o povo foi para a rua em luta contra o aumento das tarifas. O protesto foi tão significativo que abriu uma vereda em nível nacional para lutas semelhantes em vários estados do país. Desde aí, consolidou-se na cidade um movimento de luta pelo transporte que veio protagonizando diversas outras batalhas na tentativa de garantir um serviço público de qualidade na área do transporte. Vieram as lutas pelo Passe Livre, com os estudantes à frente, e, mais tarde, tudo isso desembocou na luta pela Tarifa  Zero, reivindicação que foi tomando conta de todos os que começaram a se envolver com o assunto. Se há um direito de ir e vir, garantido na Constituição, e tão caro á sociedade burguesa, então por que não garantir esse direito aos usuários do transporte? Afinal, a maioria dos que utilizam o transporte coletivo são trabalhadores e estudantes. E essa é a bandeira que comanda as lutas hoje em todo o país.

Mas, em Florianópolis, um dos capítulos dessas grandes batalhas pelo transporte também tem sido pela realização de uma licitação, já que as empresas que hoje atuam no sistema – Insular Transportes Coletivos Ltda. (antiga Empresa Ribeironense Transporte Coletivo Ltda.), Empresa Florianópolis de Transportes Coletivos Ltda. – Emflotur, Transporte Coletivo Estrela Ltda., Transol Transporte Coletivo (antiga Viação Trindadense Ltda., que absorveu a Viação Taner) e Canasvieiras Transportes Ltda – são as mesmas desde a décadas, sem que tenham passado por qualquer sistema de licitação. Muitos protestos com relação a isso foram realizados ainda na gestão da Angela Amim e depois na de Dário Berguer. Nada foi feito.

 Cesar Souza

 O atual prefeito, Cesar Souza Junior, se elegeu tendo como proposta fazer a licitação do transporte. E, nos primeiros meses da sua gestão lançou o edital. Mas, para supresa da população, o fez sem qualquer participação das gentes, daquelas que sofrem o sistema todos os dias. A proposta de licitação foi apresentada numa segunda-feira, as oito horas da manhã, com chamamento feito no dia anterior pela televisão. Ou, seja, a prefeitura não queria povo “melando” o que seus tecnocratas haviam desenhado desde o conforto de suas salas, sem qualquer processo de conversa com os usuários. É que, na verdade, o foco estava no interesses das velhas parceiras  – as empresas do transporte – e não na população.

 E assim, os poucos representantes populares que puderam estar na apresentação tiveram de ouvir, estupefatos, um discurso de apresentação de “maravilhas” tecnológicas. Haveria um sistema interligado por computador, as pessoas poderiam ver onde estava o ônibus desde seus tablets, os motoristas teriam contato com a central via internet em tempo real, e outras tantas “modernidades”. Falou-se mais de uma hora disso tudo. E sobre as linhas, os horários, os problema de desintegração? Nenhuma palavra. As pessoas que fossem procurar nos anexos da lei, que sequer estivavam à disposição. Foi preciso muita luta para que a prefeitura divulgasse a lei da licitação. E, apesar de todos os protestos e críticas feitas por especialistas no setor, o prefeito fez-se surdo e não alterou em nada a proposta. Era aquilo e ponto. O estilo “democrático” que depois também foi imposto no debate e aprovação do Plano Diretor.

Agora, nos primeiros dias de fevereiro, a prefeitura realizou reunião para abrir os envelopes das empresas interessadas em atuar no sistema de transporte da cidade. Ninguém dos movimentos sociais, nem mesmo a representação do sindicato dos trabalhadores foi autorizada a entrar, apesar de ser uma sessão pública. Tudo feito a portas fechadas, sob o argumento de que estava sendo transmitido via internet. Só depois de muita discussão, foi permitida a entrada de 15 pessoas, das que se postavam em frente a prefeitura exigindo participação. Mas, como estava proibido qualquer manifestação, os populares se retiraram em protesto.

 Ao final da sessão de abertura dos envelopes, a “surpresa”: havia um único envelope. E quais eram as empresas que, unidas num consórcio denominado de Fênix, estavam ali representadas? Um doce para quem adivinhar! Nada mais, nada menos, que as mesmas cinco empresas que já atuam na cidade desde sempre.

 A imprensa fez sua parte, divulgando no dia seguinte os fatos, sem qualquer senso crítico, sendo que os dois principais jornais ainda fizeram questão de frisar que a população seria “beneficiada” com a diminuição da tarifa, de 2,80 para 2,70. Os demais “grandes ganhos” que a população vai ter serão os 447 ônibus convencionais e 60 executivos – todos acessíveis para quem tem deficiência, com GPS e câmera de monitoramento. De novo, nada sobre trajetos, horários, linhas ou o monopólio regional.

Mudando para não mudar

Então, agora aí está. Como não apareceu mais nenhuma proposta, o único consórcio a concorrer é o Fênix, que poderia até ser nominado como “duro de matar 666”, porque significa que as mesmas empresas que exploram o serviço seguirão vivas e firmes, apesar do aparente “tropeço” causado pela licitação. Nada muda para que se diga que tudo mudou. O prefeito agora garante, com licitação, mais 20 anos para os mesmos “parceiros” de sempre.

É fato que as mudanças tecnológicas serão benéficas para a população. Mas, não há aí nenhum mérito. Adequar-se a realidade é obrigação das empresas. Também é certo que a diminuição de 10 centavos na tarifa é coisa boa. Mas, isso, ao longo do tempo, vai se perdendo no caos que é o sistema. Para os que lutam por um transporte de qualidade, o processo licitatório não toca em nada nas questões cruciais que envolvem os diários transtornos vividos pelos usuários. Seria preciso que o prefeito, num ato de sabedoria, ouvisse aqueles que sofrem o transporte. Cada um e cada uma que usa o transporte sabe como fazer para melhorar. É a forma do pé que ajusta o sapato. Mas, sabedoria seria pedir demais de um jovem prefeito que prefere administrar como um se fosse um rei. É dele que emana toda a decisão. Um rapaz que possivelmente nunca, ou raramente, andou de ônibus.

Agora, aos movimentos sociais, sindicatos e população ativa resta a luta sistemática, como sempre foi. Já se tinha como certo que o edital era uma maquiagem mal feita para uma velha amiga. Há questionamento sendo feito via judicial e existem as ruas. Ah, as ruas… esse espaço libertário que, vez em quando, é palco das mudanças.

Foto: Tali Feld Gleiser.

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