Por Pedro Bennaton*, especial para a Revista Gulliver.
Ora, se o teatro é como a peste, não é apenas porque ele age sobre importantes coletividades e as transtorna no mesmo sentido. Há no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo. Sente-se que esse incêndio espontâneo que a peste provoca por onde passa não é nada além de uma imensa liquidação. Um desastre social tão completo, um tal distúrbio orgânico, esse transbordamento de vícios, essa espécie de exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicam a presença de um estado que é, por outro lado, uma força extrema em que se encontram em carne viva todos os poderes da natureza no momento em que ela está prestes a realizar algo essencial. (O Teatro e a Peste, de Antonin Artaud )
Importante dizer que esse texto é de autoria de alguém que pratica teatro de rua, performance e intervenção urbana desde 2001 e que tenta analisar a situação atual dessa arte tão antiga e tão inerente aos seres humanos que é a arte teatral, as artes presenciais, cênicas e suas performatividades.
Neste texto, momentaneamente, não me preocupo pela sustentabilidade do teatro, apesar de defender que esta seja Estatal, tanto agora quanto depois. Os termos neoliberais sobre a arte, como economia criativa, ou similares, não são meu foco agora. Se precisamos salvar primeiro as pessoas e depois a economia não há sentido em raciocinar como o teatro sobreviverá economicamente. Se salvarmos as pessoas, o teatro se salvará. Deixemos para depois a reflexão sobre a sua sustentabilidade, por quem e como será financiado, e outras questões que flertam muitas vezes com o pensamento neoliberal. Precisamos sobreviver enquanto humanidade antes disso, e assim o teatro também não desaparecerá, precisamos garantir a sobrevivência dos praticantes do teatro através de políticas públicas estatais.
Este texto não analisa como o teatro sobreviverá financeiramente. Seu foco está em frisar como o teatro sobreviverá junto aos seres humanos, inerentemente. É o que defendo ser mais importante em meio aos discursos de especialistas econômicos que atentam contra as vidas das pessoas, realizando contas para a sobrevivência do mercado, ao invés de apresentar modos de salvar vidas.
Repito, se as pessoas conseguirem sobreviver, salvaremos o teatro, as artes presenciais.
O teatro que cobra ingressos, que se realiza dentro de um edifício teatral, pode não ter saídas mesmo. Talvez seja melhor que esses edifícios se transformem em hospitais, crematórios ou cemitérios. O teatro no palco muitas vezes tem se tornado uma espécie de cemitério.
O teatro sobreviverá em outros espaços sociais, em outras esferas, ao invés de se submeter ao espaço arquitetônico e ao Capital. Se as pessoas (re)existirem, também (re)existirá o convívio social e, desta maneira, (re)existirá o teatro. Mas um teatro que não poderá ser quantificado por meio dos olhos, “invisíveis”, do mercado. Um teatro que não gerará números, que não medirá a sua eficácia e necessidade pela quantidade de pessoas presentes por sessão. Do número de atendimentos como se fossem curtidas e visualizações. Mas um teatro que criará experiências vitais, e não virtuais.
Registros do processo de ensaios e apresentações da obra HASARD, do ERRO Grupo, em Florianópolis, Biguaçu, São José, Porto Alegre e São Paulo em 2012.
O teatro não se mede pelos números. Como medimos atualmente e diariamente os gráficos de falecidos. Assim como os falecidos, quem faz teatro, quem o assiste ou, quer dizer, quem realiza ambas as atividades simultaneamente, não são números, mas vidas. Vidas que se transformam, que se adaptam, assim como as formas teatrais.
A atual problemática do teatro não é a mesma da indústria cinematográfica, não é a mesma da indústria cultural, dos grandes shows, dos espetáculos realizados dentro de edifícios arquitetônicos. Algumas pessoas anseiam em colocar um ponto final em coisas antigas, assim como alguns não se importam com as pessoas da terceira idade, existem pessoas que ficam excitadas só de pensar que algo ficou obsoleto, que uma vida perdeu validade pela quantidade de anos que existe. Essa obsolescência programada é habitualmente usada e abusada no Capitalismo.
Mas, trago notícias ruins aos que anunciam a extinção dessa arte milenar, que nasceu e morrerá com o humano: o teatro não acabou, nunca acabará. O social persiste, e junto sobrevive a sua performatividade, pois o teatro é uma arte que se assemelha a uma barata que sobrevive à explosão de uma bomba nuclear. As cidades podem ficar desérticas, as ruas militarizadas, as pessoas devidamente resguardadas em suas casas para vencermos o desafio que essa pandemia traz aos seres humanos, mas o teatro terá a capacidade de se reinventar. As ruas também, as recuperaremos, mas esse será um foco de um próximo texto.
E não me refiro aos procedimentos de telepresença, já usados na cena contemporânea e que tiveram experiências desde as últimas décadas do século passado. Refiro-me às experiências como a do Teatro Lambe-lambe, para usar um exemplo muito mais antigo, no qual uma única pessoa assiste através de uma caixa um manipulador de formas animadas, tão ou mais asséptico que uma tela LCD, porém indiscutivelmente mais vivo, pois não se assemelha diretamente ao audiovisual, quer dizer, é seu impulsionador.
É necessário frisar que as atuais respostas telepresenciais oriundas de uma parcela dos fazedores de teatro em meio a essa pandemia podem também ser ações imediatistas e inocentes. Essa bem intencionada atual proliferação da divulgação de peças gravadas, leituras dramáticas e até peças sendo feitas ao vivo nas redes (anti)sociais como solução para esse período que enfrentamos pode ter um efeito exatamente oposto ao seu objetivo principal, que é o de salvar o teatro. Também pode não acarretar em problemas futuros, pois é sinal de que existe uma ansiedade em não pararmos de fazer teatro. No entanto, pode ser tudo o que as grandes corporações do mercado cibernético almejam, que é dominar esta que pode ser a última fronteira da presença e da precariedade dos encontros sociais. Duas qualidades que o teatro resiste em perder ao longo de séculos.
Uma peça gravada em uma plataforma de vídeo, uma peça sendo feita em uma transmissão ao vivo de uma rede social podem ser as últimas trincheiras da reificação do teatro como produto acabado, e a ser consumido. Sua disponibilização gratuita através de plataformas comandadas pelas grandes corporações do Vale do Silício faz com que executivos e acionistas dessas empresas lucrem e recebam em seus bilionários colos uma nova modalidade de interação nas redes: o teatro social se transformando em teatro de rede social. Talvez aí esteja o risco da morte do teatro, e não o Coronavírus ou a proibição de eventos de aglomeração de pessoas. O perigo de morte do teatro pode estar nessa solução rápida feita na ansiedade deste momento que durará a eternidade do instante de nossas vidas.
Em uma Sociedade do Espetáculo, termo de Guy Debord cunhado em 1967, nossas relações sociais estão midiatizadas por imagens. A questão agora é como recuperamos o corpo e os contatos corporais que vão além da imagem. O teatro não pode reduzir-se ao plasma visual, não pode reduzir seus erros apenas às quedas de conexão.
Não será esse o caminho. O Teatro é Peste, como dizia Artaud. E talvez um dos remédios para uma peste seja justamente outra. O teatro já sobreviveu à Peste Bubônica, à “Gripe Espanhola”, até mesmo seu próprio edifício, feliz ou infelizmente. Quem faz teatro já sabe lidar com aquela noite em que uma única pessoa foi assistir à sua peça, com aquele evento no qual se teve que fazer a peça de alguma maneira que não era a ideal. Quem faz teatro aprende na marra a continuar a criar, e fazê-lo, até mesmo em situações adversas e precárias, pois sabe improvisar e reinventar-se. O teatro é adverso e precário, é essencial mesmo que não seja considerado essencial pelo poder público.
O teatro e as artes presenciais só acabarão se as pessoas quiserem que a partir de agora estas sejam completamente substituídas pelo cinema, pelo cinema ao vivo e pela videoperformance. Pode ser contraditório, mas aposto um ingresso para uma peça de teatro no final do ano que nunca se fez e fará tanto teatro quanto agora e futuramente. A maior parte das famílias que está realmente em casa durante um confinamento já deve ter brincado com, ou invertido, seus papéis cotidianos para passarem o tempo juntos; milhares de pessoas que foram em suas janelas para baterem panelas e gritarem “Fora Bolsonaro”; ou centenas que dançaram e cantaram em suas sacadas, os corrales espanhóis ao inverso onde atuamos para a rua que nos olha vazia desde os balcones; o baile de máscaras em que se transformaram as ruas e os espaços comuns; ou os aplausos como gesto que une as comunidades em relação aos que estão nas linhas de frente dessa batalha pandêmica. Tais ações criam e fazem presente mais do que nunca as performatividades, as artes presenciais, possíveis nesse momento.
O teatro pode ocorrer à distância, ocorrer nas janelas, entre uma e outra pessoa na distância de dois metros, que sejam. O teatro ocorre em qualquer lugar, distópica e utopicamente. Talvez nunca se fez tanto teatro quanto antes, e nunca se fará tanto teatro. E não adianta dizer que o teatro não sobrevive, se tivermos no ocidente toda a assepsia disciplinada dos orientais. Na Coreia do Sul, China e Japão, por exemplo, existem inúmeras práticas teatrais, de teatro de rua e espaços fechados.
Acabar com a lógica dos grandes shows e com a quantificação da cultura pode ser uma das melhores coisas que já aconteceram ao teatro no último século. Se o tecido social está ferido, não precisamos de nenhum remédio além do teatro para cicatrizar essa ferida que estará aberta por muito tempo. O teatro como respirador do social. Já descobrimos a cura para os encontros sociais não morrerem, nem mesmo durante essa quarentena.
Pedro Bennaton é pesquisador, diretor, dramaturgo e ator/performer. Cofundador do ERRO Grupo.