“O sistema repressivo é mobilizado contra os indivíduos mais periféricos do crime”

Por Beatriz Drague Ramos.

Entre 2015 e 2016, o número de roubos no estado de São Paulo cresceu 5,19%, chegando a 323 mil, o maior número desde 1999, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP). Entre o segundo trimestre de 2015 e o mesmo período deste ano, crimes contra o patrimônio e delitos violentos também tiveram altas, chegando, respectivamente, a 298 mil e 100 mil casos.

Este fenômeno ocorre, segundo Alessandra Teixeira, advogada, doutora em Sociologia pela USP e professora da Universidade Federal do ABC, em um contexto no qual interagem duas forças. A primeira delas é a busca, por parte de muitos jovens, por uma atividade criminal tida como menos arriscada e mais rentável que o tráfico de drogas.

O segundo é o fato de as forças de segurança estarem mais preocupadas em prender os elementos mais vulneráveis do mundo do crime, enquanto dão pouca atenção a organizações criminosas e a seus mecanismos mais complexos. “O aparato repressivo e investigativo não é mobilizado a atuar contra a cadeia da receptação, em suas diferentes escalas e modalidades, ou contra os níveis mais articulados da economia do tráfico”, afirma Teixeira.

No livro O Crime pelo Avesso, lançado em setembro, a pesquisadora Teixeira analisa a relação do aparato estatal com a criminalidade e as transições da economia do crime em São Paulo dos anos 1930 até hoje. Nesta entrevista, a pesquisadora refaz o histórico da violência no estado e mostra como chegou-se ao cenário atual. Leia a íntegra.

CartaCapital: No livro a senhora retrata a dinâmica contemporânea do crime e sua gestão em São Paulo. Existe uma conivência das forças de segurança pública com o crime?

Alessandra Teixeira: Seria mais do que uma conivência. Há por parte dessas forças de ordem tentativas de se inserir nas economias criminais, por meio da extorsão e da corrupção. São formas de participar dessas economias, no sentido de produzi-las também. Ao mesmo tempo, essa economia criminal faz uso disso. Neste contexto, temos a chamada violência institucional.

Além do aparato policial, é preciso destacar a conivência do sistema de Justiça com as práticas ilegais. No Estado Novo (1937-1945), prendia-se mais de mil pessoas a cada 100 mil habitantes. Era uma prática ilegal, e isso chegava ao conhecimento da Justiça, mas a Justiça não fazia nada. Então havia uma conivência. Essa característica está muito presente na nossa forma de fazer a gestão dos ilegalismos.

CC: Na pesquisa, a senhora trata das mudanças dos crimes em São Paulo ao longo dos anos, bem como de suas respectivas formas econômicas e a gestão destas pelo Estado. Como se deu a evolução?

AT: Nesse largo período de tempo, identifiquei, naquilo que chamei de economia criminal da prostituição, entre os anos 1930 e meados dos 1960, um locus de ilegalismos nos quais as forças de ordem operavam diuturnamente na gestão da lei, por meio da violência institucional e da extorsão policial, recorrendo sobretudo às prisões correcionais. Essas prisões acabaram sendo chamadas de “mofos”.

De fato não havia uma criminalidade violenta. Chamo isso de economia da prostituição pois esse mundo de ilegalismos girava em torno da prostituição, que em si não é um crime, e da exploração dela, feita inclusive pela polícia. As “caixinhas” exigidas das prostitutas são exemplo disso. Isso foi bem retratado na imprensa a partir dos anos 1960, quando essa economia, territorializada em regiões, como a Boca do Lixo, começa a entrar em crise.

CC: Como se dá a evolução das economias criminais após os anos 1960?

AT: Com a crescente urbanização mais decisiva na cidade de São Paulo, momento em que temos uma intensificação da pobreza, as populações vão para as favelas, redesenhando a questão social. Há também a entrada da arma de fogo nos mercados criminais.

Nesse momento, o crime urbano difuso, ainda pautado no batedor de carteira, sem violência, transforma-se no “trombada”. Também surge a violência policial, o esquadrão da morte se forma no Rio de Janeiro e começa a se formar em São Paulo. O padrão da gestão dos ilegalismos se transforma, o que rui a economia da prostituição.

Nos anos 1970, o roubo começa a ascender no contexto urbano, mas ainda desarticulado. É o momento em que a figura do menor de rua vai emergir com força. Sobre ele recaem todas as formas de justiçamento, uma perspectiva presente até hoje no imaginário social, originando toda a discussão da redução da maioridade penal.

CC: Existe alguma correlação entre o justiçamento ocorrido nos anos 1970 e as práticas policiais de hoje?

AT: Sim, essas práticas continuam ocorrendo nos dias de hoje, mas ao lado delas está também uma rotinização da violência policial letal, algo que não era presente até os anos 1960. Por isso digo que, quando há mudança na economia criminal, os padrões de gestão dos ilegalismos também se transformam.

A rotinização dessa violência é legitimada pelas instâncias do sistema de Justiça, que sistematicamente não denunciam esses agentes ou os absolvem. Trata-se de uma verdadeira licença para matar a população alvo da seletividade penal, ou seja, jovens do sexo masculino, pobres e negros nas periferias das grandes cidades.

CC: Como a criminalidade se relacionou com o sistema carcerário nos anos 1990? 

AT: Na década de 1990, o contingente dos anos anteriores da violência urbana é capturado pelo aparato jurídico mais punitivo, um paradoxo diante da Constituição de 1988 e da reforma do Código Penal em 1984, que humaniza um pouco as penas.

Isso produz o encarceramento em massa no final dos 1980 e começo dos 1990, refletido hoje na quarta maior população encarcerada do planeta. Com a explosão das taxas de encarceramento, o nível de conflito torna-se muito maior e isso está na base dos grupos criminosos. Em São Paulo surge o Primeiro Comando da Capital (PCC).

CC: Como podemos relacionar as mudanças na gestão e na economia dos crimes com o surgimento do PCC?

AT: Ao mesmo tempo em que temos esse contingente sendo recrutado para as cadeias, ocorre o fenômeno da territorialização da economia criminal do tráfico. Essa territorialização permite o trabalho em rede e ocorre em um contexto de disputa territorial feroz, por monopólio. Por isso em 1999 são registradas as piores taxas de homicídio em São Paulo.

Essa economia é dinâmica, ela vai se monopolizar a partir dos anos 2000, mas não em torno de um ator na periferia. É um ator que está fora da periferia, dentro da prisão, com extra transitividade, garantida pelos acordos e formas de permissividade de gestão dos ilegalismos, sobretudo dentro da prisão.

Drogas
Policias federais com drogas apreendidas no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. E os chefes do tráfico, quem prende?

CC: Como se dá a falta de interesse do Estado em não combater organizações criminosas como o PCC?

AT: Pode-se dizer que o PCC é um elemento da geografia do Estado na gestão dos ilegalismos de São Paulo. Mas é importante para os grandes grupos e para a imprensa acreditar que o PCC detém o Estado nas mãos.

O aparato repressivo e investigativo não é mobilizado a atuar contra a cadeia da receptação, em suas diferentes escalas e modalidades, ou contra os níveis mais articulados da economia do tráfico, os atacadistas, distribuidores e a lavagem de dinheiro. Todo o sistema repressivo é mobilizado para prender, e prender muito, os indivíduos mais desarticulados e mais periféricos da economia do crime.

Com isso, o roubo aumenta e a gestão estatal nega isso. Atualmente o que existe é uma espetacularização: a retórica do PSDB em São Paulo é dizer que o encarceramento aumenta porque a polícia está reprimindo o crime. Não há nenhuma ação pensada estrategicamente para se acabar com esse fenômeno. A gente vive uma situação caótica, o roubo cresce mesmo.

CC: Em seu estudo há relatos de jovens inseridos no tráfico e no roubo em São Paulo. A partir de quando eles são inseridos nestes crimes?

AT: As crianças e jovens em situação de vulnerabilidade e pobreza estão inseridos na história dos ilegalismos urbanos e sua gestão na cidade desde pelo menos os anos 1950, da “punga”, passando pela “trombada” e hoje os crimes patrimoniais avulsos e o tráfico. Os jovens que entrevistei, todos haviam recebido uma medida de internação, provisória ou não, transitavam entre o roubo avulso em áreas mais centrais e o tráfico de drogas nas regiões periféricas, em geral no mesmo bairro onde residiam.

CC: Por que a atual preferência dos jovens pelo roubo?

AT: Os adolescentes estão em posições mais arriscadas no tráfico, sem meios simbólicos e ou oficiais de negociar a liberdade deles. Então são mais facilmente pegos, mas se arriscam porque há uma oferta, o consumo é hoje o imperador da cidadania. Por outro lado, eles reconhecem a subordinação deste trabalho e como adolescentes recusam essa subordinação. Daí vem a opção muito forte pelo roubo, em que podem portar armas também.

Simbolicamente, o roubo se aproxima mais de um ideário de liberdade e realização, embora seja com o roubo que enfrentam os piores dissabores da violência, extorsão e morte. Embora o roubo seja avulso, é certo que precisam acionar um ator importante desse mercado criminal, que é o receptador.

Nesse sentido, o roubo acaba também inserido numa economia criminal, porém muito menos articulada e mais difusa. E é nesse contexto que os jovens enfrentam mais riscos. No tráfico são “trabalhadores” descartáveis, mas não acionam outros atores desta economia, fortemente hierarquizada (soldados, gerentes, sintonia, patrão, etc..).

Fonte: Carta Capital

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