O sistema penal não protege as mulheres da violência

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Foto: Raphael Alves

Por Dina Alves.

O Brasil possui hoje uma população prisional de 622.202, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. No que diz respeito ao perfil etário dessa população, observa-se que a proporção de jovens é maior no sistema prisional que na população em geral. Ao passo que 56% da população prisional é composta por jovens, essa faixa etária compõe apenas 21,5% da população total do país. Deste total, 67% são negros (Depen, 2017). O número de pessoas privadas de liberdade em 2014 era 6,7 vezes maior do que em 1990. No que diz respeito à questão de gênero, o Brasil conta com uma população prisional feminina de 37.380 presas. No período de 2000 a 2014, o aumento desta população foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculina, no mesmo período, foi de 220,20%, refletindo, assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres. São Paulo possui o maior número de presos no país, ocupa a quarta posição na taxa de encarceramento de jovens negros e a segunda maior taxa de adolescentes em medidas socioeducativas de internação e semiliberdade.

Nos últimos dez anos (2006-2016), o estado registrou um boom em seu sistema prisional, com a construção de novos presídios, aliada a uma política de encarceramento em massa que resultou na prisão de 215 mil pessoas. São Paulo tem também a maior população absoluta de mulheres encarceradas, respondendo por 39% do total de mulheres presas no país. Embora a população carcerária feminina seja historicamente menor do que a masculina, pode-se dizer que há uma feminização da punição, principalmente no que diz respeito aos crimes de tráfico de drogas. As mulheres negras compõem 67% do total; jovens entre 18 e 29 anos representam 50%; a mulheres que não concluíram o ensino fundamental, 50%; condenadas com penas de até oito anos de reclusão compõem o universo de 63%.

A linha de cor e de gênero nestas estatísticas demonstram que crime e seus tratamentos não constituem categorias ontológicas, mas que o sistema penal é um dispositivo de poder de dominação racial, advinda da escola penal positivista, que conserva o princípio do controle corporal e reserva aos negros a culpabilidade e a punição. Ou seja, a base constitutiva da justiça criminal é de um direito penal antipobre-antinegro-anti-indígena. Dois casos ilustram bem as formas de punições seletivas na era colonial: primeiro, no ano de 1549, no governo de Tomé de Souza, na cidade de Salvador, a punição a um indígena Tupinambá, que matou um colono e foi amarrado à boca de um canhão, atirado pelos ares e desfeito em pedaços. Segundo, em 1550, dois franceses presos no sul do país, por contrabando de pau-brasil, atividade que a coroa considerava intolerável, teve o futuro diferente. Em carta ao rei, Tomé de Souza, se justificaria da seguinte forma: “Não os mandei enforcar porque tenho necessidade de gente que não custe dinheiro, daqui por diante se fará o que Vossa Alteza mandar”.

Historicamente o perfil social da população, cada vez mais presentes nas estatísticas prisionais, são de pessoas negras, indígenas e pobres. Os intérpretes da lei (sejam eles policiais, promotores, juízes, advogados, legisladores, administradores, defensores públicos e demais servidores da justiça penal), reproduzem, disseminam e sustentam um “regime de produção de verdade” que favorece a produção de provas e a atuação policiva, voltada à ampliação do poder penal, ao encarceramento em massa, principalmente de pessoas sem condenação. A seletividade racial da justiça também está identificada na vigilância ostensiva aos territórios racializados e criminalizados, nos massacres perpetrados pelo Estado, seja contra a juventude negra e as constantes chacinas, seja nos confinamentos das prisões, na radicalização do medo nas narrativas da violência urbana, que encontra na grande mídia o seu mais poderoso instrumento de difusão e antecipação da condenação de negros, ditos “perigosos”, “estupradores” e “traficantes”. Do outro lado do muro, há uma outra população vítima do que Jeremy Travis chama de “punição invisível”. Apesar da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, XLV, prelecionar que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, uma vez que a pena tem caráter pessoal e intransferível, ou seja, ninguém pode cumprir determinada sanção penal para outrem, visto que ela tem como escopo não só de retribuir ou prevenir determinada conduta delituosa, como também de ressocializar (DELMANTO, 2002), o sistema prisional estende a punição às crianças (uma vez que os direitos parentais são suspensos), às mulheres negras (que assumem a responsabilidade pela renda familiar) e a toda a comunidade (que tem seus habitantes associados ao crime por causa da cor e da origem territorial dos presos/as).

Aliás, os recentes massacres no interior das penitenciárias brasileiras, que ocorreram no inicio desse ano, nos dá os sintomas mais visíveis do continuum do genocídio democrático no país desde o início do sistema escravocrata. A problemática do recrudescimento do sistema criminal e o super encarceramento brasileiro que atinge a população negra e pobre e seus familiares é pauta de várias organizações de defesa dos Direitos Humanos, dentre elas a ONU, Anistia Internacional e Human Rights Watch. Estas organizações têm feitos diversas denúncias sobre as lotações nos presídios e as consequentes violações de direitos. Inclusive, num dos relatórios da ONU, constatou-se que “negros enfrentam risco significativamente maior de encarceramento em massa, abuso policial, tortura, maus-tratos, negligência médica, de serem mortos pela polícia, receber sentenças maiores que os brancos pelo mesmo crime e de sofrer discriminação na prisão – sugerindo alto grau de racismo institucional” (ONU, 2016).

Preocupados com essa tendência, ainda que timidamente, vez que muitos países já adotaram políticas de desencarceramento e penas alternativas, a criminologia crítica, em conjunto com setores da sociedade civil e com parte dos movimentos sociais organizados e setores dos movimentos feministas, concentram esforços para superar a política criminal autoritária imposta pelo terrorismo de Estado e enfrentam novo e paradoxal problema: apresentar alternativas para uma política de desencarceramento na sociedade historicamente punitivista.

Vale dizer que mesmo as diversas frentes da esquerda absorveram a tese do punitivismo, à medida em que esquecem nas suas agendas de reivindicações a pauta do superencarceramento em massa, ou para se utilizar de um discurso mais radical, pautas sobre abolicionismo penal. O movimento feminista e LGBT, numa tendência majoritária, o que obviamente não implica negar posições minoritárias diferenciadas e mesmo contrárias entre si, se inserem plenamente na ambiguidade, de ao mesmo tempo em que demanda a descriminalização de condutas, hoje tipificadas como crimes (aborto, adultério e sedução), demandam também o recrudescimento da criminalização de condutas, como foi o caso da criação do assédio sexual (art. 216-A do Código Penal), da violência doméstica (§9º do art. 129 do Código Penal) e da própria Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Dois casos recentes e de grande repercussão nacional servem como exemplo para demonstrar a dificuldade que nós, dos movimentos sociais progressista, sobretudo, feministas/feministas negras, temos para responder às questões de como enfrentar a expansão do encarceramento em massa e a contraditória legitimação do sistema penal para buscar respostas válidas de punições.

a) Caso Eliza Samúdio

Eliza Samúdio foi assassinada pelo machismo e pela misoginia incrustados na cultura da violência contra a mulher. Passados anos do seu assassinato ela continua sendo julgada e culpabilizada pela própria morte. Bruno Fernandes de Souza, um dos autores do assassinato e ocultação de cadáver de Eliza, foi condenado em primeira instância a uma pena de 22 (vinte e dois) anos e 3 (três) meses de reclusão. Recentemente foi concedido liminar para sua soltura. Setores dos Movimentos Feministas se organizaram e protestaram, tanto contrários a soltura, quanto pelo inconformismo da impunidade e naturalização da violência contra a mulher. O ato ocorreu, coincidentemente, no dia Internacional das Mulheres, que reuniu mais de 20 mil pessoas, no centro do Rio de Janeiro. Frases e desabafos de mulheres foram recorrentes no ato: “O que ele cometeu foi crime de feminicídio, um ato de misoginia (de ódio às mulheres) e deve desculpas à sociedade e às mulheres. Ou “Justamente no mês em comemoramos o Dia Internacional da Mulher, quando denunciamos as violências que sofremos no cotidiano, e também nesse momento de ataque do conservadorismo aos nossos direitos, ocorre a volta de Bruno ao esporte. Isso é uma afronta. Estamos falando de um país onde 13 mulheres morrem por dia, vítimas do feminicídio”. Ainda algumas frases amplamente veiculada nas redes sociais demonstraram o inconformismo sobre a pena aplicada e a soltura do jogador: “Só 22 anos? Oi? Isso é pouco. Tinha que apodrecer na cadeia” ou ainda “pra machista tem que ser pena de morte”.

b) Caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro

Nos dias 21 e 22 de maio de 2016, uma adolescente de 16 anos, foi estuprada no Morro da Barão, na Praça Seca, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por, pelo menos, 33 homens. O estupro coletivo da jovem ganhou destaque na imprensa nacional e internacional, após imagens do crime terem sido divulgadas pelos próprios autores nas redes sociais. Organizações feministas, artistas e movimentos sociais em gerais, organizaram atos em defesa dos direitos das mulheres, contra a cultura do estupro e por punições mais severas aos estupradores, em, pelo menos, 11 cidades brasileiras. Em nota à imprensa o governador do Rio de Janeiro, defendeu a aplicação de pena de morte contra estupradores, a delegada de polícia que comandou o caso disse que “a pena deve ser exemplar para mostrar para a comunidade que existe lei e que a lei quem faz é o Estado”, e os movimentos feministas organizado pelas redes sociais e militância atuante reivindicaram e exigiram respostas do legislativo e do estado para punição mais rigorosas aos estupradores. Recentemente o Senado Federal aprovou um projeto de lei que prevê pena mais rigorosa para os crimes de estupro, praticados por duas ou mais pessoas e o agravamento da pena em casos de crime de estupro coletivo.

A temática da violência de gênero e a luta contra a impunidade masculina é pauta histórica na agenda dos movimentos feministas. A cultura do estupro oriunda das matrizes coloniais e a banalização da violência doméstica oferecem combustível aos movimentos feministas e LGBT para legitimar suas reivindicações, ainda que sejam por mais punições. A questão paradoxal que trago aqui é: o sistema penal não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência, como também duplica a vitimização feminina, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito e muito menos para a transformação das relações de gênero. Mais do que isso, vale refletir que o feminismo negro tem papel crucial neste debate, na medida em que as agendas punitivistas ocasionam consequências trágicas na vida dos já considerados “inimigos” do Estado por excelência, nas nações da diáspora africana. Assim, os casos ilustrativos acima nos permitem reconhecer que há imensa dificuldades entre nós, movimentos feministas progressistas e populares, para articular respostas a estas questões. A dificuldade, no entanto, não nos dá a carta branca para não refletirmos sobre isso. A deficiência deve ser lida aqui como um diagnóstico da nossa incapacidade de encontrarmos respostas, ante nosso vício cultural como parte de uma sociedade punitivista. Quem nunca quis resolver conflitos interpessoais na “Justiça”?. Quem nunca repetiu jargões “sem mais conversa. Nos veremos em juízo”?. As frases parecem nos dá uma ideia da justiça como lugar de resolução de conflitos e de proteção dos indivíduos. Talvez seja, mas não para todos. O déficit de uma base teórica no Brasil sobre esta temática me permite elaborar apenas perguntas e, ao mesmo tempo, finalizar estas reflexões com a mesma pergunta que foi iniciada este texto:

Como poderíamos responder às pressões da sociedade civil para a punição desses 33 jovens estupradores? Como podemos fazer para, ao mesmo tempo, combater a opressão de gênero, de sexo, contra as comunidades LGBTs, por exemplo, e não cair na cilada da mais punição, mais encarceramento, principalmente contra os jovens que são vítimas do próprio sistema punitivo e estigmatizados como criminosos, estupradores, traficantes? Como os movimentos sociais progressistas podem ir além das demandas pela reforma/humanização das prisões? Ou, ainda, como as agendas feministas e do movimento LGBTs podem pensar soluções para a violência contra estes grupos sociais sem depender do estado penal?Quais as práticas abolicionistas penais possíveis em sociedades que dependem do inimigo interno negro para o controle social? Qual a agenda política de reivindicação dos movimentos LGBTs e Feministas no contexto do encarceramento em massa no Brasil?

Assim, deixo explícita uma agenda política que convida a pensar estratégias políticas para o desafio urgente de desencarceramento dos grupos sociais racializados, que compõem o sistema penitenciário e engrossam as fileiras fora dos muros.

Dina Alves é advogada, atriz e pesquisadora na área de gênero, raca e prisão

(*) Os temas debatidos neste texto foram originalmente apresentados pela autora no I Workshop internacional sobre justiça abolicionista interseccional – “Anti-carcel feminisms”. O encontro reuniu acadêmicos, estudantes, ativistas e artistas de vários países e ocorreu entre os dias 24 a 27 de outubro de 2016, na cidade de Johanesburg – África do Sul.


Fonte: Ponte Jornalismo

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