O ser humano robô. Por Carlos Weinman.

robôs
Imagem Ilustrativa, via Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Durante a viagem Perséfone conversava com sua tia Inaiê sobre o quanto era importante ter memória. As duas conversavam enquanto passavam pela divisa entre os Estados do Paraná e Santa Catarina. A imaginação da menina trazia consigo uma visão reflexiva e crítica muito interessante. Em um determinado momento Perséfone disse para Inaiê:

Vamos imaginar que fosse criado um robô, com inteligência artificial, capaz de imaginar, sonhar e sentir, mas ele não teria nenhuma memória, apenas aprenderia com as novas informações.

Inaiê – Seria como uma criança, uma tábula rasa, uma mente sem nenhum conteúdo.

Perséfone – Quando a criança começa falar aprende, também, os valores de uma sociedade.

Inaiê – Você é muito esperta para sua idade! Podemos dizer que por detrás de um conceito, de uma palavra, até mesmo de uma sílaba há uma memória coletiva, isto é, aprendemos aquilo que é fruto das experiências de muitas pessoas.

Perséfone – Então, poderíamos dizer que há uma imaginação coletiva?

Inaiê  – Como poderíamos imaginar juntos?

Perséfone – Cada palavra que aprendo vai estar na minha mente, não é material, aprendo a compartilhar os sentidos, significados com todos que estão a minha volta. Assim, todas as coisas ganham um nome por uma invenção ou criação humana, que nos indica uma imagem, por isso poderia dizer que é fruto de uma imaginação de um grupo, de uma coletividade!

Inaiê – Você tem razão, tudo que aprendemos, até mesmo o certo ou errado, a forma adequada para se alimentar, cumprimentar alguém está ligado com uma visão coletiva, uma forma de ver, por isso podemos dizer que faz parte de um mundo criado por nós, é o que chamamos de convenção. Se pensarmos dessa forma, podemos ser definidos como pessoas que defendem que todo conhecimento está ligado com as experiências, somos empiristas.

Perséfone – Não sabia dessa palavra, mas tem outras visões diferentes?

Inaiê – Claro que sim, temos filósofos e pessoas que defendem um idealismo, um inatismo!

Perséfone – O que é isso?

Inaiê – é uma visão que diz que o ser humano ao nascer já tem ideias que vem com ele, com o passar do tempo, pelo estímulo são despertadas, por isso usamos a palavra inato, que significa que vem junto com a pessoa, seria um conhecimento racional, anterior ou antes da experiência.

Perséfone – Eu não acho essa ideia muito certa, pois se as crianças têm experiências distintas, nascem em lugares e espaços nada semelhantes tendem a pensar, se vestir diferentes, caso houvesse verdades inatas, não aconteceria isso, todos seriam iguais!  

Inaiê – Muito bem, mas se alguém somar dois mais dois, o resultado sempre será o mesmo, então há uma verdade racional válida para todos, o que você diz disso sua espertinha?

Perséfone – Você só quer me confundir! Realmente, o resultado é sempre o mesmo, no entanto, quem ensina os números, a forma de somar? O conhecimento da matemática não está ligado com as experiências de uma sociedade? O aprendizado não é passado pelos adultos? Muitas vezes não compreendo o motivo de ter que decorar a tabuada, gostaria de aprender a lógica, como é construído o raciocínio, o número que é ensinado é apenas um conceito, nada mais tia! Eu aprendo mais matemática com Roberto, pois ele me explica e vejo que os números são construções, assim também são os círculos, como ele fala: a matemática é apenas uma forma de ver e organizar as coisas, se aprender isso, vou achar fascinante. Agora, voltando ao nosso assunto, o robô ele apreende os números, faz equações rapidamente, mas se ele não tiver essa memória coletiva, teria a noção do justo ou do melhor  como os  seres humanos?

Inaiê – Hoje você incorporou um gênio! Realmente ele teria que aprender, o cálculo por si só não bastaria, ele teria que ter experiências, sistematizar com suas formas de atuação no mundo, nos espaços e tempos, abstrair o mais significativo  para saber como agir, o que leva a outra necessidade, isto é, a de interagir com os demais.

Perséfone – Nesse caso, se ele através da internet aprendesse a se comunicar com outros, ainda teria que desenvolver a capacidade de sentir e ter acesso as experiências individuais e coletivas que formam o nosso imaginário.

Inaiê – Caso a humanidade conseguisse construir essa inteligência, só bastaria colocar as memórias nessa máquina para ser um humano? `

Perséfone – Acho que não, seria apenas uma criação humana.

Inaiê – No entanto, essa máquina não teria as mesmas habilidades e potencialidades? Até podendo ser superior em muitos aspectos, inclusive com a capacidade de sentir!

Perséfone – Não seria essas limitações humanas que definem quem somos?

Inaiê – Acho que você foi abduzida menina!  Realmente o ser humano pode ser definido pela condição humana, que revela seus limites em relação as próprias possibilidades da vida. No caso a máquina teria tudo do humano, mas ainda não teria a experiência da finitude! As nossas realizações e buscas durante a vida estão interligadas com nossos sentimentos e limitações.

Perséfone – Pensando na possibilidade dessa máquina poder se igualar ao ser humano, até mesmo na finitude, não teria uma dignidade humana?

Inaiê – Realmente uma questão muito difícil! Ainda sim seria um ser artificial, criado!

Perséfone – O que você me diz sobre tudo o que criamos para prolongar e melhorar a genética humana, pois tudo isso tem a ação humana, pois imagine o ser humano que vivesse 300 anos, teria a mesma forma de agir e de ser como nós?

Inaiê – Acho que você é mais inteligente do que sua tia! A condição humana não seria a mesma. Agora fica a questão das memórias, que seriam inseridas, pois elas são sociais, históricas, culturais, realizadas e vivenciadas pelos seres humanos, por sua vez a máquina criada apenas receberia esses elementos, sem passar pelo processo de aprendizagem. Tal memória não seria consequente do questionamento, do exercício do pensamento que ocorrem durante a vida.  

Perséfone – Tia tem um problema na sua afirmação! Olha só, quando aprendo uma palavra não quer dizer que questiono, apenas absorvo os conceitos, por isso penso que seria o mesmo com o robô.

Deméter – A conversa de vocês duas vai longe! Agora quero ver você responder essa questão minha irmã, pois a própria história pode ser aprendida de maneira mecânica, sem questionamento, heróis e vilões são apresentados, nem todos questionam.

Roberto – Isso é verdade! Olha só, muitos personagens são construídos pelos discursos, que vão fazer parte de uma memória coletiva. Assim, geralmente quando falamos de heróis, podemos esconder muita coisa, ou melhor, muita gente é esquecida propositalmente, por esse motivo, podemos afirmar que por detrás de um grande herói existem muitos interesses, o culto a memória sem crítica e sem reflexão constrói uma visão de mundo que é absorvida e não questionada.

Inaiê – De fato, somos guiados por muitos conceitos, ideias, grande parte das vezes não somos conscientes disso, apenas reproduzimos, como se fossemos programados, o que não nos difere da máquina criada, com inteligência artificial.

Ulisses – Acredito que aqui está a chave da resposta para questão de nossa sobrinha! O ser humano, sem o exercício do pensamento, que não corresponde apenas decorar conceitos, não consegue atingir a sua condição de dignidade, como diria o filósofo Aristóteles: “não é suficiente dizer que o ser humano é diferente do animal por ter a razão, mas é uso dessa capacidade que poderá fazermos diferentes”. Nesse sentido, o filósofo grego dizia que a razão está como uma potência, uma possibilidade, muitas vezes absorvemos os costumes, as informações e adotamos, o que vai gerar como resultado algo muito parecido com o instinto dos animais. Vejo que poderíamos estender essa questão para diferenciar o ser humano de uma máquina, capaz de fazer o cálculo, quando somos capazes de filosofar ou fazer o exercício do pensamento ultrapassamos essa condição, mas do contrário se não fazemos isso, apenas somos um número, quantidade.

Perséfone – Tio Ulisses, tem muitas pessoas que não são educadas para o pensamento e a reflexão, muitos não tem acesso, outros até tem, mas não aprenderam a questionar. Sobre as pessoas que são obrigadas a trabalharem em condições precárias, com uma jornada enorme, elas não vão conseguir fazer esse exercício. Nesse caso, elas não poderiam ser tratadas como seres humanos?

Ulisses – Ótima questão! Acredito que para essas pessoas, que são obrigadas pela necessidade a não ter espaço para pensar, foi negada a dignidade humana, pois imagine o que poderíamos fazer em prol do exercício do pensamento da humanidade, usando os recursos tecnológicos para o humano e não para o serviço dos sentimentos egoístas, como o mundo seria?

Inaiê – O nosso mundo seria mais humano, pois a consciência e o exercício do pensamento são características fundamentais da humanidade. Por outro lado, muitas pessoas até teriam a possibilidade, considerando a parte financeira, mas elas foram educadas para o consumo e não para o pensamento crítico e reflexivo, não deixam de ser escravas, pois o que as conduz são determinados conceitos que absolveram durante a vida.

Perséfone – Então o nosso mundo, a maneira como compreendemos, os valores sociais, correspondem a uma criação humana, não é natural, por isso a importância de aprender a questionar e refletir, fazer o exercício do pensamento.

Roberto – Além disso, temos que aprender a ler o mundo a nossa volta, o que significa não apenas apreender palavras, decorar funções matemáticas, mas sim, aprender, compreender as formas como as relações entre seres humanos e como a natureza ocorrem, o que viabiliza um agir pautado em uma forma de interação crítica e reflexiva.

Nesse momento Inaiê lembrou do início da sua trajetória, marcado pelo desejo de busca pela humanidade, o que levou ao encontro de irmãos e de amigos. Em sua mente brotou uma ideia que ela manifestou em voz alta:

A jornada no mundo dos estranhos implica na superação da estranheza através do exercício do pensamento, mas a trajetória é marcada por inúmeras dificuldades, entre elas, estão os  grilhões manifestados nos conceitos, nos ideais absolutos que são entoados por várias formas, por várias mídias, com diferentes formatos,  em geral todos se apresentam como a única verdade aceitável, esboçam a pretensão de se converterem em uma tradição, uma vez que ideias imaginadas ganham poder quando absorvidas inconscientemente por um grande número de pessoas,  sempre que isso acontece uma gota de sangue de um inocente é derramado, o exercício do pensamento podado, o grito é calado, deixando de lado a condição humana, partindo para ideia de uma mera existência e sobrevivência, as contradições desaparecem, juntamente com a capacidade de pensar!

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Carlos WeinmanCarlos Weinman possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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