O ritual e a música dos meninos

Por Urda Alice Klueger.

(Excertos do livro “Viagem ao Umbigo do Mundo”, publicado em 2006.)

Quanto ao ritual da Pachamanca, que os meus amigos conheceram naquele dia, há que dar maiores detalhes. Pachamanca, literalmente, quer dizer “onda de terra”, e representa o banquete dos Andes peruanos por excelência. Na cultura andina a comida está entrecruzada com o culto à Natureza e com as efemérides sociais. A Pachamama (ou Mãe-Terra) é fonte de fertilidade, de vida, e também fonte de numerosos produtos que voltam a ela para serem cozinhados. Tal ritual é feito principalmente em fevereiro e março, como celebração da colheita, mas fora aberta uma exceção para homenagear aos visitantes vestidos de negro que tinham vindo de tantas partes da América!

Sintetizando uma Pachamanca: se enterram no solo e se cozinham com pedras em brasa as diversas carnes: gado, porco, galinha, carneiro, cuey, e as verduras: batatas, batatas-doces, vagens, milho verde, junto com milho ao molho branco e queijo derretido. O sabor que a terra quente dá a esses produtos é realmente especial. Apesar de hoje se usarem carnes que foram trazidas para a América pelos espanhóis, a Pachamanca remonta à épocas pré-coloniais, e seu caráter ritual é uma forma de render homenagem à divindade Terra, comendo diretamente das suas entranhas os produtos que ela fecunda. A elaboração da Pachamanca demora horas e exige a participação de muitos membros da comunidade, homens e mulheres. Há uma ordem no enterramento das carnes, tubérculos e temperos, que são colocados sobre e sob as pedras em brasa protegidos por ervas úmidas e folhas de bananeira. Depois, se cobre a Pachamanca com terra, cuidando para que esteja hermeticamente fechada e não escape calor nem fumaça. Cobre-se a mesma, depois, com uma cruz de flores. [1] É uma grande honra ser recebido com uma Pachamanca, e imagino que os meus amigos entenderam a homenagem que lhes foi feita.

Nessa noite, quando andava por uma das calçadas do centro de Cusco, acabei dando de cara com seu Chico, Jaka e o Lobo. Eles tinham comprado casacos de lã de lhama e estavam a inaugurá-los, e acabamos rindo todos juntos, pois aqueles casacos só serviam para aquele clima. Aonde vivíamos dificilmente seria frio o suficiente para que se usassem tais bonitos casacos, que acabariam sua história num armário. Já que ríramos juntos fomos jantar juntos num elegante restaurante num segundo andar, bem na Praça de Armas de Cusco. Durante a refeição apareceu por lá um grupo de meninos músicos que era para a gente nunca mais esquecer. Eram cinco irmãos parecidíssimos, usando roupas típicas iguais, o que os tornava ainda mais parecidos. A diferença entre eles estava na idade – o mais velho estaria entrando pelos 12 anos, e o menorzinho só teria uns cinco. Todos eram bons músicos e tocavam seus instrumentos andinos como antigos antepassados deles devem ter tocado milhares de anos antes, inclusive usando roupas parecidas às que eles usavam agora, mas o menorzinho, aquele de uns cinco aninhos, roubava a cena. O menino era um artista nato, incorporava o que fazia, e o fazia tão bem que ficava-se com vontade de roubá-lo, traze-lo junto para amá-lo muito e muito por toda a vida! Os PHD e aquele grupo já se conheciam de viagens anteriores, e havia adesivos dos PHD nos seus instrumentos musicais. Era uma noite de paz e de emoção, e quando os meninos começaram a tocar uma nova música, e nos preparávamos para mergulhar no passado antigo da América através dela, Jaka e eu nos entreolhamos espantados e caímos na risada: aqueles meninos que eram como que um símbolo do Peru, de repente estavam tocando Obladi-Obladá, dos Beatles! É impressionante como as culturas se interpenetram e se mesclam neste mundo repleto de diversidades! Como historiadora, sei quantos estudos se fazem sobre tal tema – e estavam lá os meninos cusqueños a tocarem Obladi-Obladá com a naturalidade de meninos ingleses, testemunhando a cientificidade de coisas que eu lera em livros! Queridos meninos peruanos, não há como não guardá-los no coração para sempre!

[1] Agradecemos aqui a colaboração do PHD Enrique Navarro, de Lima, Peru, que nos elucidou quanto aos detalhes da Pachamanca. (Nota da autora)

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