O risco da História, e das ilusões

Por José Álvaro Cardoso.

Desde que se intensificaram as articulações para o golpe no Brasil, lá por 2014, veio à tona um dos traços assustadores da nossa sociedade, que é o total desconhecimento, de parte da população em geral, de aspectos elementares da história do Brasil. Mesmo quando trata-se de acontecimentos políticos relativamente recentes. E não apenas entre a juventude, mas nas demais faixas etárias. É possível que este seja este um dos problemas mais graves e uma das tarefas mais urgentes que teremos que enfrentar no Brasil nas próximas décadas. Povo sem conhecimento de sua própria história é povo sem destino relevante, e presa fácil de ambições imperialistas. Como estamos vendo agora, quando sofremos um ataque contra a soberania popular, sem os golpistas precisarem disparar um tiro.

O conhecimento da história é essencial para o povo de qualquer país, pois ajuda a evitar que se cometa os mesmos erros do passado. Passados apenas 33 anos do fim da ditadura militar, é desolador presenciar grupos pregando que seria melhor voltar ao período militar do que viver nessa “bagunça”, onde todos os políticos seriam corruptos, ladrões, etc. Impressiona constatar que setores da classe média e alta simpatizem com ideias semelhantes às que prepararam o caldeirão social do fascismo no mundo, e no Brasil. Uma parte da classe média é abertamente antirrepublicana e antidemocrática, e prega sem a menor vergonha, o rancor, o ódio e a ferocidade. Com a desculpa que lutam contra a corrupção, na verdade esse pessoal tem uma postura completamente fascista, contra os pobres e os marginalizados da sociedade brasileira.

Uma diferença essencial deste momento, em relação aos anos que precederam o golpe de 1964, é que naquela ocasião havia propostas de reformas profundas para o país. Por volta de 1962 tinha se encerrado um ciclo de crescimento, que foi da II Guerra Mundial até o início dos anos 60, caracterizado por um vigoroso incremento do PIB e que ensejou ao Brasil ingressar no caminho da industrialização moderna. Este período teve as seguintes características: a) ampliação do mercado interno; b) políticas protecionistas em relação à indústria nacional e apoio à substituição de importações; c) fortes investimentos estatais na infraestrutura de energia, transportes e na produção de insumos básicos; d) estímulos à entrada maciça de capital estrangeiro no setor de bens manufaturados produzidos para o mercado interno; e) facilidades fiscais, cambiais e creditícias concedidas ao capital privado como incentivo à produção industrial; e f) crescimento da oferta de alimentos e insumos agrícolas.

Quando esgotou o referido ciclo de crescimento, dentre outras medidas, no final de 1962 o economista Celso Furtado, então ministro extraordinário para Assuntos de Desenvolvimento Econômico, apresentou ao país o Plano Trienal. O Plano, dentre outros assuntos fundamentais, tocava em dois itens sabidamente críticos da agenda nacional: reforma agrária e medidas de controle do capital estrangeiro no país. A ideia de reforma agrária visava combater o latifúndio, expandir um mercado interno para a indústria, ao mesmo tempo que estendia a sindicalização dos trabalhadores rurais. As medidas de controle do capital estrangeiro – como, por exemplo, a limitação da remessa de lucros – favoreceriam as indústrias nacionais e o desenvolvimento autônomo do país.

A agenda do Plano Trienal é atualíssima, e deveria estar na ordem do dia do debate nacional, pois os principais problemas abordados naquele documento, continuam sem solução. Por exemplo, vivemos um aguçamento da desnacionalização da economia nos últimos anos, a reforma agrária ainda precisa ser realizada, e a renda é ainda mais concentrada que no começo dos anos de 1960. Por detrás do golpe de Estado de 2016 está uma questão de fundo essencial, que é uma agenda de resistência histórica que vem no Brasil desde muitos anos. Essa agenda foi derrotada várias vezes na história do país: há algumas décadas, em 1954 (quando renasceu com o suicídio de Vargas, adiando o golpe); em 1961, quando quiseram impedir Jango de assumir; e duramente derrotada com o golpe de 1964. Essa agenda é, basicamente, a luta por um projeto nacional de desenvolvimento, com distribuição de renda e com soberania em relação às potências imperialistas.

Como agora, no golpe de 1964 havia uma direita que lutava para fazer o país se render incondicionalmente à dominação do capital financeiro internacional. E a crise mundial do sistema capitalista tem levado o império a perpetrar golpes em todo o mundo, somente na América do Sul, recentemente, golpes foram operados em três países. Recentemente, o secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, sugeriu a possibilidade de um golpe militar na Venezuela. Segundo ele “na história da Venezuela, e dos países sul-americanos, às vezes os militares são o agente da mudança quando as coisas estão ruins e a liderança não serve ao povo”. Essa foi a manifestação de um secretário de Estado do país que lidera o golpe no Brasil, e que vem perpetrando golpes mundo afora, com a ajuda de militares ou não. Com um detalhe: os EUA sabem que a tentativa de golpe na Venezuela enfrentaria uma firme resistência, que inclusive vem sendo preparada pelo governo.

Aqui irão continuar tentando dar uma fachada de legalidade ao golpe, ação que ilude um número cada vez menor de incautos. Porém, se houver necessidade, dependendo da reação da população e dos rumos das eleições gerais, podem dar um golpe militar, como já ocorreu tantas outras vezes na história do Brasil. A essa altura do jogo, a partir das peças que já estão postas no tabuleiro, as ilusões que ainda existem quanto à determinação dos que deram o golpe, assim como do risco de golpe militar, mostram por que tomamos o golpe de Estado mais asqueroso da história, com o mínimo de reação.

[avatar user=”Jose Alvaro Cardoso” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

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