O que sabemos sobre vacinas para COVID-19 no Brasil até agora. Por Natalia Pasternak e Denise Garrett.

Imagem: arte IQC

Por Natalia Pasternak e Denise Garrett.

Começamos 2021 rodeados de incertezas em relação à vacinação para COVID-19 no Brasil, embora algumas informações – ainda vagas – tenham surgido ao longo da primeira semana do ano. Com a divulgação preliminar e ainda parcial dos dados de eficácia da Coronavac pelo governo paulista, temos finalmente um pedido de autorização de uso emergencial na Anvisa. A coletiva de imprensa encabeçada pelo governador João Doria, no entanto, deixou bastante a desejar na transparência dos resultados. Foram divulgados desfechos secundários muito promissores, mostrando um bom potencial da vacina para proteger contra doença que exija atendimento médico, hospitalização e óbitos.

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, afirmou, por sua vez, que pretende contratar doses da Coronavac para uso na campanha de imunização federal, e até o momento em que terminávamos este texto ainda não havia sido desautorizado pelo chefe negacionista, que no passado havia lhe passado um sabão por considerar o uso da “vachina”.

Apesar de bem-vindo, o anúncio do governo paulista deixou no ar mais questões do que seria razoável. Não foram apresentados os números do desfecho primário, ou seja, a eficácia real da vacina na prevenção de doença, assim como foi feito de maneira bastante clara para as vacinas da Pfizer e Moderna. Um relatório completo deve ser liberado em breve – mas nenhuma razão concreta foi dada para que os números não fossem explicitados de imediato, embora tudo indique que será uma boa vacina.

Vale lembrar que a vacina contratada pelo governo federal, da empresa AstraZeneca e Universidade de Oxford, teve problemas na execução de seus testes de eficácia. Quando finalmente apresentou os dados dessa fase, optou por fazê-lo de uma maneira que falhou em convencer boa parte da comunidade científica, e também os órgãos reguladores dos Estados Unidos.

Em termos de estratégia, o Brasil tem um plano nacional que estabelece grupos prioritários e lista características de infraestrutura, como número de salas de vacinação, e capacidade da cadeia de frio. Isso é ótimo, e sabemos que o Brasil tem competência e é capaz de montar excelentes campanhas de vacinação. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) tem larga experiência, e o país sempre foi referência em vacinas.

No entanto, para tirar vantagem dessa capacidade, precisamos de um requisito básico: as vacinas. Sem saber a quais teremos acesso, e em que quantidade, de nada adianta declarar intenções. O PNI só vai poder elaborar uma estratégia de vacinação de fato quando souber exatamente quais vacinas teremos, e quanto de cada. O Ministério da Saúde expressou interesse em adquirir cem milhões de doses da Coronavac, e já havia expressado intenção de comprar cem milhões de doses da AstraZeneca.

As apostas do Brasil

O Brasil firmou dois acordos bilaterais, um do Instituto Butantan com a Coronavac/Sinovac, e outro da Fiocruz com a AstraZeneca/Oxford.

A Coronavac, enfim, anunciou ter finalizado sua fase 3 de testes, quando se avalia a eficácia da vacina – qual a “vantagem” que as pessoas vacinadas têm, em relação aos não-vacinados, quando se trata de obter proteção contra a doença. Apresentou resultados de 78% de eficácia para casos que precisam de atendimento médico, e perto de 100% para prevenção de doença grave e morte.

Não apresentou, no entanto, o resultado principal, que seria a eficácia geral da vacina, comparando o número de “eventos” (pessoas doentes) nos grupos vacinado e placebo. Durante a entrevista coletiva que teve o governador Doria como mestre de cerimônias, o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, citou alguns dados gerais, após ser questionado. Mas citou-os de cabeça. Os números não constam do material oficial divulgado.

Segundo Covas, o número total de eventos estaria em torno de 220, com aproximadamente 60 casos no grupo vacinado, e 160 no placebo. Calculando-se a eficácia em cima desses números, chegaríamos a 63%, uma boa eficácia, perfeitamente aceitável e acima dos 50% exigidos pela OMS e pela Anvisa.

A falta de um relatório, ou até mesmo um comunicado à imprensa, detalhando esses resultados chamou atenção dos jornalistas presentes, e da comunidade científica. Entendemos que o intuito de uma coletiva de imprensa não é divulgar dados técnicos, mas em geral os comunicados oficiais dirigidos ao público acompanham e se embasam em comunicações científicas. Aguardamos, portanto, os dados completos. O Governo Paulista já recebeu 11 milhões de doses, adquiriu 70 milhões de seringas, e está com o plano de imunização pronto para iniciar, conforme prometido, em 25 de janeiro.

Já a vacina da AstraZeneca/Oxford (AZ) está em situação mais nebulosa. Apesar de ter conseguido aprovação no Reino Unido, México e Índia, para aprovação nos Estados Unidos os dados disponíveis sobre a vacina não são suficientes – falta clareza, principalmente a respeito da eficácia em idosos, justamente a população mais afetada. A multinacional insiste em divulgar uma eficácia de aproximadamente 70%, mas este número é uma estimativa baseada em análises de estudos separados, feitos com dosagens diferentes, injeções de placebos diferentes e abordagens diferentes, em testes conduzidos de modo heterogêneo em países diferentes (Reino Unido, Brasil e África do Sul). A análise combinada de múltiplos grupos, sem padronização, foi bastante criticada pela comunidade científica, porque dificulta uma interpretação limpa dos resultados.

Apresentou-se uma estimativa de 62% de eficácia desta vacina para o regime de duas doses, mas ainda assim com grande incerteza; e essa eficácia foi medida para a faixa de 18 a 55 anos, então seguimos sem saber a eficácia em idosos, o principal grupo prioritário numa campanha ampla de vacinação contra COVID-19.

Não há nada que indique que o imunizante  da AZ não seja uma boa vacina, bem pelo contrário. Provavelmente é, e uma eficácia em torno de 60% será muito bem-vinda e impactará de forma significativa a circulação da doença.

É pena, somente, que não tenham sido desenhados ensaios clínicos mais limpos, que permitiriam resultados mais objetivos. E pena também que a empresa – e não os pesquisadores – tenha apostado mais no marketing do que na ciência e na comunicação transparente.

O que sabemos

Há indícios que as vacinas testadas até agora são eficazes em prevenir casos graves da doença. Isso é ótimo: uma vacina que realmente transforme a COVID-19 em uma “gripezinha” já salvará inúmeras vidas. Gripezinha podemos manejar. Neste sentido, vacinas com eficácia mais “baixa” como a AZ com 62%, ou Coronavac, com 63%, se esse número for confirmado, não devem ser desprezadas só porque existem vacinas “melhores”. Se uma vacina com 62%, ou mesmo 50%, de eficácia, for 90% capaz de reduzir hospitalização e morte, já será de grande valia para o controle da pandemia e o retorno à normalidade. E reduzirá também a circulação da doença.

Fica a dúvida agora se os dados atuais disponíveis sobre a vacina da AstraZeneca, serão suficientes para a Anvisa conceder uma autorização de uso emergencial. Por um lado, como o próprio nome diz, o uso é emergencial. Por outro, faltam dados que são essenciais para inclusive programar uma boa campanha. Para ambas, AstraZeneca e Coronavac, precisamos ter acesso aos dados, e principalmente aos dados estratificados por idade. Nossos grupos prioritários são baseados em risco de exposição e morte, fazendo com que a população acima de 60 anos seja ponto chave na estratégia de vacinação. Sem saber exatamente o quanto essas vacinas protegem nesta idade, estaremos tateando no escuro.

Outras apostas

A AstraZeneca e a Coronavac são as principais apostas do Brasil, mas o governo também aderiu ao acordo internacional Covax, da Organização Mundial de Saúde. Infelizmente, aderiu pleiteando a cota mínima, para doses que cubram apenas 10% de nossa população, o que nos dá direito a comprar 42 milhões de doses das vacinas que fazem parte do programa. Entre elas temos a Moderna e a Novavax. A Moderna deve ser a primeira disponível, uma vez que já recebeu autorização da FDA. É uma vacina com resultados muito claros, eficácia de 94%, eficaz em idosos também, e com boa estimativa para prevenção de casos graves. Pode ser armazenada em temperaturas de -20C, o que não é impeditivo para nossa cadeia de frio. Seria uma boa aposta, portanto, mas só a teremos em pequena quantidade.

A Novavax é uma vacina de subunidade proteica, que apresentou bons resultados em fase 1 e 2. Precisamos acompanhar a fase 3, e também esperar para ver se essas empresas que chegam um pouco atrás vão realmente conseguir concluir suas fases de testes de eficácia, que requerem um número grande de voluntários. Afinal, quando já existem vacinas no mercado, fica bem mais difícil conseguir voluntários para um teste com placebo, onde metade dos participantes não recebe o imunizante.

Uma alternativa é fazer testes de “não-inferioridade”, comparando com uma vacina que já existe, assim nenhum voluntário deixaria de receber uma vacina de verdade – nesses testes, a comparação busca demonstrar que a vacina testada é, no mínimo, tão boa quanto a que já existe no mercado. O problema deste tipo de teste é que, para ter um bom poder estatístico, ele demanda um número ainda maior de voluntários, o que, para uma empresa pequena como a Novavax, pode inviabilizar o processo.

Nada impede também que o Brasil corra atrás de novos acordos bilaterais. O Ministério da Saúde parece estar negociando com a Pfizer, cuja vacina, que apesar de apresentar problemas de armazenamento e transporte a -70C, é excelente. A empresa se diz disposta a sanar as dificuldades de transporte, em parceria com os países importadores. O problema aqui é que o mundo todo está comprando da Pfizer, então o Brasil entra em uma longa lista de espera.

Outra empresa que encerrou a fase 3 e deve liberar em breve os resultados é a Janssen, com a vantagem de trabalhar com uma única dose, e com transporte em temperatura de geladeira, ideal para nossa cadeia de frio. Resta saber por que o Ministério da Saúde ainda não procurou a Janssen para um acordo.

Dose única

Com o aparecimento da nova variante do vírus SARS-CoV-2 que pode ser 40%-80% mais transmissível, e com a pandemia fora de controle em alguns países, instalou-se uma grande urgência para preservar o sistema de saúde e salvar vidas. Essa urgência levantou uma grande questão entre vacinar mais pessoas com um nível mais baixo de proteção (usando apenas uma dose de vacinas pensadas para duas doses) ou de se manter o que foi determinado nos ensaios clínicos (uso de duas doses) e garantir o nível de proteção detectado nos testes.

Há uma tentativa de usar dados extraídos dos estudos feitos com as vacinas da Pfizer, Moderna e AstraZeneca para estimar o nível de proteção que uma só dose traria. Os testes, no entanto, não foram desenhados para isso, e tentativas de tirar conclusões firmes de dados gerados para finalidades diferentes são sempre arriscadas.

Em tempos de escassez de doses produzidas, é claro que é tentador pensar em vacinar o maior número de pessoas possível, mesmo que isso traga apenas uma proteção parcial. Parece muito melhor proteger parcialmente mais pessoas do que totalmente um grupo pequeno. O problema é que a incerteza em torno do nível de proteção – e da duração do efeito protetor – quando se fala em apenas uma dose é muito grande.

Espaçar as doses também tem sido cogitado, com o mesmo problema. Atrasar algumas semanas ou até alguns meses – temos indícios de vacinas onde dar o reforço um ou seis meses depois não faz grande diferença – pode ser possível, mas quanto podemos atrasar? Afinal, o regime de doses foi estabelecido para dar a melhor resposta imune possível. Talvez tenha sido realmente uma falha não terem sido feitos braços de estudo com uma única dose, já antecipando o problema da escassez. Mas o fato é que, com os dados que temos, não sabemos o suficiente para adotar esta estratégia. Pode dar certo? Pode. Mas de novo, estaremos no escuro.

Misturar as vacinas

Essa, definitivamente, não é uma boa ideia. Do ponto de vista técnico, provavelmente funcionaria bem receber uma primeira dose de uma vacina, e uma segunda dose de outra. Certamente algum reforço na resposta imune aconteceria. Mas como não testamos essas misturas, não sabemos se este reforço seria tão robusto quanto o regime normal (pode até ser melhor em alguns casos, na verdade; o problema é que realmente não sabemos). Outro desafio com essa abordagem seria que perderíamos completamente o controle da vigilância de efeitos adversos: se alguém tiver efeitos colaterais, como saber se foi causado pela primeira vacina, pela segunda, ou pela mistura?

Todas essas questões precisarão ser resolvidas e as decisões incorporadas no Plano Nacional de Vacinação. E, em meio a tantas dúvidas e incertezas com relação à vacinação no Brasil, fica apenas uma certeza: com o aumento de casos no país, ainda mais agora com a detecção da nova variante que pode intensificar ainda mais a transmissão do vírus, é imperativo que tenhamos o início da vacinação no Brasil o mais rapidamente possível.

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