O que houve em Pinheirinho foi um estupro social

 

Por Magali Moser.

“Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

 

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

 

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

 

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.”

Bertold Brecht

 

 

 

Com o entusiasmo de uma menina, Conceição de Oliveira protestava sem parar sob o sol escaldante: “o povo unido jamais será vencido”. O grito da mulher de 53 anos vinda de Minas Gerais na infância para São Paulo em busca de uma vida melhor juntava-se à multidão de quase 6 mil pessoas que percorreu as ruas centrais de São José dos Campos, no interior de São Paulo, dia 2 de fevereiro, durante a passeata nacional em apoio aos moradores de Pinheirinho. Conceição lembra com terror da madrugada de 22 de janeiro, quando os tratores derrubaram a casa construída com sacrifício pela catadora de lixo. Temeu pela queda das paredes atingirem o próprio corpo. Mas não é a perda do patrimônio material que a leva às lágrimas. Ela se comove ao falar do vizinho cujo desaparecimento segue sem solução. Desde o dia da invasão da polícia não teve notícias do aposentado, que não foi encontrado em nenhum dos cinco abrigos. A solidariedade que sobra a Conceição torna as ações da polícia, da justiça e dos governos Geraldo Alckmin e Eduardo Cury (ambos do PSDB) ainda mais covardes: escancara a discrepância entre “o ato de se preocupar com o outro” e a postura de quem é incapaz de se sensibilizar com o próximo e perdeu as noções de humanidade em nome de interesses econômicos.

As 1,7 mil famílias (cerca de 9 mil pessoas) foram expulsas de suas casas de forma brutal e truculenta. Depois de oito anos na comunidade, não tiveram tempo de nada. Tentaram resistir com tambores de plástico e bastões de madeira. Mas foi uma disputa desleal. Com helicópteros, cavalaria, tropa de choque, gás lacrimogêneo e armas de borracha e de fogo, policiais espalharam medo e tensão. Em defesa do poder econômico, a ação defendeu a propriedade privada do megaespeculador Naji Nahas, dono do terreno. Condenado por lavagem de dinheiro e corrupção, ele é acusado pela quebra da Bolsa de Valores no Rio de Janeiro, em 1989, entre outros golpes milionários. Chegou a ser preso em 2008 junto com o banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta. Mas a Justiça preferiu agir contra as famílias de Pinheirinho. A juíza da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, Márcia Mathey Loureiro, proferiu a sentença de reintegração de posse, contrariando a liminar da Justiça Federal que suspendia a invasão policial. Junto com o evidente interesse econômico naquela área, as decisões que culminaram na chacina lembram o que ocorreu na Alemanha, com o Terceiro Reich. Propunha-se uma “faxina social” cujo único objetivo era a extinção dos pobres.

_ O que houve em Pinheirinho foi um estupro social _ define o coordenador geral do movimento, Valdir Martins, o Marron.

A marcha nacional buscou sensibilizar o governo federal para desapropriar o terreno e garantir o direito de moradia às famílias. Nas faixas levadas pelos manifestantes, palavras de ordem expressavam o desejo: “Dilma: não basta se solidarizar, é preciso desapropriar.” A passeata durou cerca de três horas. A concentração iniciou por volta das 9h, na Praça Afonso Pena, e seguiu até a prefeitura municipal. O grande número de mulheres carregando crianças no colo, algumas recém-nascidas, chamou à atenção e derrubou a ideia veiculada por muitos jornais, que trataram os moradores como “criminosos” e “bandidos”.

_ Quando entramos no Pinheirinho era tudo matagal. Agora nossa casa “tava” pronta. Não sobrou nada. Mataram até os gatos. Foi terrível. Não consegui nem tirar o leite da pequena _ diz Moacir de Paiva Rosa, 62 anos, que fez todo o percurso da passeata com a filha de cinco anos no colo.

Acompanhado da mulher e dos dois filhos, o mais novo com um mês e 15 dias nos braços, o caminhoneiro Reginaldo Santos Miguel, 34 anos, relembrava o massacre aos direitos humanos:

_ Saímos de lá à base de bala. Fomos tratados como bichos. Não acredito em mais nada. Só em Deus.

Militantes, estudantes, movimentos sociais, lideranças da esquerda de todo o país juntaram forças em solidariedade às famílias. O Sindicato dos Bancários de Blumenau e Região organizou um ônibus com 39 pessoas do Vale do Itajaí, Florianópolis e Curitiba. Levaram mantimentos e solidariedade. Em comum, um objetivo: denunciar para o mundo como os pobres são tratados no país. Afinal, o que ocorreu em Pinheirinho não foi um ato isolado apenas contra aquelas famílias, mas uma afronta a todos os trabalhadores e aqueles que não compactuam com injustiças sociais. Em São José dos Campos, os relatos e depoimentos de moradores despejados reforçam a indignação e revolta:

_ Quando a polícia chegou, sitiou todo o local e começou a tortura. Aquele que não sofreu tortura física foi vítima de tortura psicológica. O massacre foi total. Uma covardia _ lembra o morador Sérgio Henrique Pires.

_ Doeu muito voltar lá e ver tudo o que você construiu abaixo. Foi de cortar o coração _ relata o baiano, de Salvador, Arnaldo Goes Santana, de 63 anos, há seis anos no Pinheirinho.

_ Meu barraco era pequeno, mas era meu. Meu pai não me deu estudo, nem meu nome eu sei escrever direito. Meu único sonho realizado era ter meu lugar. Meu sonho não é vir pra cidade grande. Quero um lugar pra plantar, como tinha minha horta em Pinheirinho_ conta Conceição.

Mãe de 14 filhos, Conceição morava sozinha no Pinheirinho. O cachorro Julin lhe fazia companhia. Não pôde levá-lo ao abrigo no Bairro Morumbi, onde resiste ao calor e à falta de espaço com cerca de 350 pessoas. Faltam janelas. Os ventilados não dão conta de refrescar o ambiente. Os colchões estão amontoados no chão do ginásio de esportes. Não há espaço para todas as famílias no ginásio. Algumas delas estão numa cancha de bocha, ao lado.

_ Falta água. Falta tudo. As pessoas estão amontoadas. Os abrigos mais parecem campos de concentração_ defende Marron.

_ Aqui não é lugar para morar, para criar um filho. Mesmo sendo pobre, vou dar o melhor para meu filho. Quero voltar para o que é meu _ emociona-se Fabiana da Silveira Nemeth, 30 anos, mãe de Rafael, de três.

A área de 1,3 milhão de m² onde viviam as famílias lembra um cenário de guerra. O retrato é de destruição total. Localizado em uma região nobre de São José dos Campos, o terreno funcionava como bairro, com casas de alvenaria, pontos de comércio, até área de lazer para as crianças. Só restaram escombros. Pedaços de eletrodomésticos, ursos de pelúcia, brinquedos, panelas e móveis inteiros destruídos provam que os moradores não tiveram tempo de recolher nada. Saíram com a roupa do corpo. Precisam ter devolvida a dignidade que lhes foi arrancada.

A indignação não basta. Solidarizar-se com os moradores não é suficiente. Há outros “Pinheirinhos”, alvos da especulação imobiliária, da perversidade de um sistema político que coloca os lucros acima da vida humana, espalhados pelo Brasil. Que as vozes indignadas com o que houve em Pinheirinho não silenciem com o passar do tempo. Que o grito de Dona Conceição, a moradora de Pinheirinho que não se cansava de bradar: “o povo unido jamais será vencido” sirva para despertar outras vozes e ações de resistência e coletividade.

Fotos: Magali Moser.

 

 

 

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